Leilão da coleção de Emanoel Araújo é suspenso a pedido do governo federal

Lei determina que museus sob a alçada do Ibram, o Instituto Brasileiro de Museus, têm preferência para adquirir as obras

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São Paulo

O leilão da coleção de obras de arte que pertenceram a Emanoel Araújo, o fundador do Museu Afro Brasil morto em 2022, foi suspenso e ainda não tem nova data para acontecer.

O pregão estava previsto para começar na segunda-feira (25) e se estender por quatro noites, mas um pedido extrajudicial do Ibram, o Instituto Brasileiro de Museus, para a Bolsa de Arte, a responsável pelo pregão, fez com que a casa de leilões paulistana adiasse a venda das obras.

Jóia de crioula; pulseira de ouro em placas com camafeus
Joia de crioula, pulseira de ouro em placas com camafeus, que deve integrar leilão com obras de Emanoel Araújo - Bolsa de Arte/Divulgação

A solicitação da autarquia federal para os leiloeiros chegou nesta quinta (21), semanas depois que o pregão das peças foi anunciado.

O pedido do Ibram tem lastro legal. Segundo a Constituição, os 30 museus sob a alçada do órgão federal têm preferência em caso de venda judicial ou leilão de bens culturais, como é o caso da coleção de Araújo, um acervo de 5.000 peças com relíquias do barroco e da joalheria brasileira.

O prazo de preferência para as instituições do Ibram, entre os quais o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e museus de arte sacra em vários estados, é de 15 dias.

Neste período, também podem demonstrar interesse nas obras da coleção os museus que aderiram voluntariamente ao Sistema Brasileiro de Museus, um órgão federal que fomenta a cooperação entre os museus brasileiros e que abarca instituições que não estão no Ibram.

A exposição das primeiras 600 peças a serem leiloadas pode ser vista na galeria Bolsa de Arte, em São Paulo, e ficará em cartaz pelo menos até o fim de outubro, segundo Jones Bergamin, o leiloeiro. Bergamin disse que só marcará a nova data do pregão depois que o Ibram se manifestar.

Segundo a assessoria de imprensa do Ibram, "por enquanto não há manifestação de interesse de nenhuma instituição sobre nenhum item específico".

O leiloiero também afirmou que tem interesse em vender a coleção, de valor museológico, para uma instituição, para que ela não seja dividida entre diversos compradores individuais. Isto é o que geralmente ocorre em um leilão, dificultando o acesso público a obras de arte.

Dos 5.000 itens da coleção, cerca de 1.500 irão a leilão pela Bolsa de Arte, em etapas, e os fundos serão destinados aos oito irmãos de Araújo e a quatro pessoas próximas a ele, mas que não eram de sua família, conforme o artista pediu em seu testamento.

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Emanoel Araújo em sua casa, em São Paulo - Eduardo Knapp - 4.dez.12/Folhapress

De acordo com Rubens Naves, um dos testamenteiros, essas pessoas trabalharam para Araújo, seja ajudando a produzir suas obras de arte ou em cunho pessoal.

A coleção ficava na casa de Araújo no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Na Bolsa de Arte, é possível ter ideia de como era ao menos um cômodo desta residência, dado que seu quarto foi reproduzido no espaço expositivo.

Estão ali, por exemplo, uma pintura do século 18 de Frei Inácio da Silva Valente onde vemos um músico negro tocando violino, com lance inicial de R$ 90 mil, além de uma escultura em terracota de Osmundo Teixeira representando Netuno, o deus do mar, com preço a partir de R$ 8 mil.

As obras combinam com uma cama de madeira de lei e uma poltrona Jangada de época, um clássico do mobiliário brasileiro desenhado por Jean Gillon, que será vendida por pelo menos R$ 15 mil.

De acordo com o leiloeiro, a coleção evidencia o interesse de Araújo em obras que contam a história de artistas e artesãos negros, muito antes do atual foco de museus, galerias e bienais em expor e vender artistas não brancos.

A coleção, formada durante seis décadas, tem em sua maioria obras de artistas brasileiros, tanto populares quanto consagrados, mas há também peças do Benin, como uma série de instrumentos de cerimônia em bronze, que valiam dinheiro no país, e da Nigéria, a exemplo de uma cabeça arqueológica.

Óleo sobre tela de Nicolò Frangipane, que fez parte da coleção de Emanoel Araújo
Óleo sobre tela de Nicolò Frangipane, que fez parte da coleção de Emanoel Araújo - Bolsa de Arte/Divulgação

Um dos principais núcleos da coleção, com 1.600 itens, são as joias de crioula, como eram chamados os acessórios usados por mulheres escravizadas no Brasil dos séculos 18 e 19. São pulseiras de ouro com balangandãs, braceletes também de ouro, colares, anéis e peças de prata com pingentes para serem amarradas na cintura.

Cada um dos penduricalhos tem um significado, pinçado das religiões africanas, muçulmanas ou do catolicismo, numa amostra do sincretismo da cultura brasileira. A figa, por exemplo, simbolizava proteção, de modo que era usada para espantar o mau agouro.

"O Emanoel Araújo via as joias afrobrasileiras como uma manifestação artística fundamental para o entendimento da cultura do país. Era uma joalheira identitária, com elementos e fazer completamente diferentes das joias das mulheres brancas", afirma o joalheiro Rafael Moraes, que conviveu com Araújo e conhecia a sua coleção. "É um estilo de joalheria que não se parece com nada no mundo."

Moraes lembra que Araújo vem de uma família de ourives, o que lhe garantiu desde pequeno a educação do olhar para as joias. Seu pai era um artesão importante na cidade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia, e chegou a produzir peças para Maria Bethânia.

Outro núcleo importante da coleção são as esculturas em madeira de santos negros, produzidas por artistas populares no século 18, a exemplo de uma representação de São Benedito das Flores e outra de Santo Antônio com uma criança branca no colo. São peças raras, com lances iniciais a partir de R$ 35 mil.

Nenhuma obra de autoria de Araújo será leiloada, e a Bolsa de Arte afirma que vai enviar ao Museu Afro Brasil documentos, cartas e manuscritos de seu fundador que forem encontrados.

O museu no parque Ibirapuera guarda também em comodato 2.800 obras da coleção de Araújo, que não vão a pregão agora mas devem ser vendidas futuramente, segundo Wagner Pozzer, o outro testamenteiro.

Estas obras tem unicidade do ponto de vista museológico e dialogam com o acervo da instituição, e a ideia é que elas sejam compradas em conjunto pelo poder público ou por um mecenas que possa eventualmente doá-las para o Museu Afro Brasil, de acordo com os testamenteiros.

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