Dos palácios de Brasília a leilões milionários, qual o segredo do design brasileiro?

Exposições e livros resgatam os móveis modernos de Bernardo Figueiredo, Geraldo de Barros, Jean Gillon e Jorge Zalszupin

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Exposição com mobiliário assinado por Jorge Zalszupin, em sua casa, em São Paulo Ruy Teixeira

São Paulo

Em meados do século passado, uma série de designers imaginaram móveis para um Brasil que se modernizava. Com o uso de materiais então disponíveis em abundância, como o couro, o jacarandá e até mesmo redes de pescar, eles projetaram cadeiras e sofás de contornos limpos e confortáveis ao sentar, além de mesas, estantes e bufês desprovidos de ornamentos.

São “móveis sem tanto estofado, em que você vê mais a pureza dos materiais, com formas em harmonia e que não lembram o estilo rococó, ao contrário dos móveis que imperavam até então nos interiores das casas da elite do Rio de Janeiro”, afirma a crítica de design Adélia Borges. Ela dá como exemplos os sofás de veludo, quentes demais para as temperaturas cariocas, e o mobiliário “que passa status, estilo Luís 15”.

A partir dos anos 1950, nomes como Bernardo Figueiredo, Jean Gillon, Geraldo de Barros e Jorge Zalszupin mobiliaram prédios públicos em Brasília —à época em construção—, hotéis e apartamentos de uma classe média urbana mais esclarecida, que buscava peças condizentes com a arquitetura moderna em ascensão.

Agora, quatro exposições em São Paulo e dois novos livros resgatam a história dessas peças e de seus criadores, ajudando a explicar como elas surgiram e por que se tornaram um legado do mobiliário nacional, passando a ser vendidas mais recentemente como obras de arte —em edições numeradas e com certificado de procedência, por dezenas de milhares de reais.

O Museu da Casa Brasileira, o MCB, exibe até dezembro as principais criações de Jean Gillon, um judeu romeno que fugiu de um pogrom em sua cidade natal e acabou se estabelecendo no Brasil. Dispostos diretamente no chão, para simular o ambiente de uma casa, estão originais restaurados, como as poltronas Jangada —sua obra mais famosa, de 1968—, Tijuca, Rio, Saci e Bertioga, além de estofados feitos para exportação e de uma cadeira criada para o hotel Eldorado, na capital paulista.

Um traço marcante de Gillon é o uso da rede de náilon, de evidente inspiração náutica, afirma Giancarlo Latorraca, diretor técnico do MCB. Na Jangada, uma cadeira de estrutura abaulada, as almofadas de couro são suspensas pela rede, solução diferente da usada em outras poltronas de mesma tipologia da época, a exemplo da clássica poltrona Mole, de Sergio Rodrigues, em que o estofado é posto sobre cintas de couro.

Gillon fez ainda cenografia para peças de teatro, tapeçaria com motivos da fauna brasileira, pinturas e objetos para casa, alguns dos quais estão expostos. Essas facetas de sua criação, contudo, são abordadas com mais detalhes no livro “Jean-Gillon: Artista-Designer”, volume com textos sobre seu trabalho a ser lançado no final de julho e organizado pela galerista Graça Bueno, detentora da guarda do acervo do artista.

Outro judeu que aportou no Brasil na metade do século passado após sofrer perseguição, o polonês Jorge Zalszupin está com a casa na qual viveu com a família por seis décadas na capital paulista aberta para visitação pela primeira vez, por um curto período de tempo.

O imóvel de 500 metros quadrados no Jardim América foi esvaziado, de forma a valorizar seu projeto arquitetônico, que mistura referências brasileiras e escandinavas, e então mobiliado com algumas peças que Zalszupin desenhou, além de objetos de uso pessoal. Estão lá a icônica poltrona Dinamarquesa, de 1959 —confeccionada em jacarandá e almofadas, com desenho que remete ao design daquele país—, e a mesa central Pétala, composta por elementos em madeira pau ferro.

A exposição é uma homenagem à memória do arquiteto, morto no ano passado. “Existem casas que poderiam ser casas-museu como essa, que é um patrimônio municipal, nacional”, argumenta a curadora Lissa Carmona, responsável pela reedição dos móveis de Zalszupin, vendidos pela loja Etel.

Segundo ela, as duas filhas do arquiteto trabalham na criação de um instituto com o nome do pai, nos moldes da Casa de Vidro de Lina Bo Bardi ou da Casa Modernista de Gregori Warchavchik, mas o processo é lento e um tanto complicado. Há também a intenção de organizar algum evento para marcar o centenário do nascimento do designer, no ano que vem.

Outro nome fundamental dessa geração, Geraldo de Barros ganha a partir de agosto uma retrospectiva no Itaú Cultural, abarcando suas diversas áreas de atuação, como a fotografia, a pintura, o desenho e o mobiliário. Influenciado pela Bauhaus e pelo construtivismo geométrico, o paulista foi um pioneiro do concretismo, e tinha a ideia de criar móveis industriais de qualidade e apuro estético, para serem vendidos em massa.

A exposição terá 31 peças de mobiliário criadas por ele em suas duas grandes incursões nessa área, a Unilabor, uma cooperativa de trabalho antenada com o ambiente cultural modernista dos anos 1950, e a fábrica de móveis Hobjeto, de móveis laqueados e modulados, condizentes com a década de 1960. Poderão ser vistos, por exemplo, a cadeira de ferro MTF 600 e um carrinho de chá de madeira e ferro, além de um sofá que ele desenhou feito de aço e tecido no final dos anos 1970.

De volta ao MCB, o museu inaugura em julho uma retrospectiva do trabalho de Bernardo Figueiredo, carioca que trabalhou na loja e galeria Oca, de Sergio Rodrigues, um ponto de encontro desses criadores na Ipanema dos anos 1950. Uma de suas criações mais representativas, a poltrona Carioca estará desmontada e aplicada numa das paredes do museu, mostrando cada uma das partes que a compõem.

Outro destaque é uma sala dedicada ao Palácio do Itamaraty, para o qual Figueiredo projetou a cadeira dos Arcos e a poltrona Rio —originais de ambas poderão ser vistos. “Brasília foi, naquele momento, uma alavanca do design brasileiro no setor moveleiro. Tinha que equipar os edifícios do Oscar Niemeyer. E o Oscar dizia que não poderia colocar móveis que eram cópias de modelos europeus", afirma Maria Cecilia Loschiavo, uma das organizadoras da mostra e também de um novo livro sobre Figueiredo.

Loschiavo acrescenta que mobiliar Brasília “foi uma loucura, uma aventura”, pois não havia estrutura de produção na cidade ou em Goiás, e os componentes dos móveis viajavam pelas estradas de terra vermelha para serem montados por lá, a exemplo das cadeiras projetadas por Sergio Rodrigues para o auditório Dois Candangos, da Universidade de Brasília. “Não era um mobiliário totalmente industrial, parte da produção ainda era artesanal.”

As mostras em torno dos mestres do design ocorrem num momento de maturidade do mercado e de altíssima procura dentro e fora do Brasil por mobiliário moderno. A Etel, por exemplo, que tem lojas em São Paulo, Milão e Houston, já lançou ou relançou 60 criações de Zalszupin. A galeria Passado Composto Século XX reeditou a poltrona Jangada cinco vezes e pretende relançar a cadeira Bertioga, segundo Graça Bueno, a galerista.

Os preços, em geral na casa das dezenas de milhares, como por exemplo os R$ 38 mil cobrados por uma Jangada produzida agora ou os R$ 44 mil na reedição do carrinho de chá de Zalszupin, podem chegar, em alguns casos, a centenas. Uma mesa de centro original, feita com tronco maciço por Joaquim Tenreiro, considerado o pioneiro do mobiliário moderno brasileiro e mestre de Bernardo Figueiredo, teve lance inicial de R$ 600 mil num leilão há poucos dias.

O que há de mais acessível são cadeiras de Paulo Mendes da Rocha —a famosa poltrona Paulistano varia de R$ 5.000 a R$ 8.000. Uma cadeira original de ferro e latão feita por Geraldo de Barros para a Unilabor, em 1957, sai por R$ 4.800.

Mas nem sempre design assinado foi exclusividade dos endinheirados. “Os preços eram mais acessíveis. Não tinha essa monetização e a espetacularização que hoje existe em torno do design”, diz Loschiavo, que escreveu um livro referência na área, "Móvel Moderno no Brasil”. “O móvel era encarado como objeto útil e necessário e que precisava acompanhar as mudanças de costume e de gosto das camadas mais intelectualizadas da população.”

Os valores começaram a aumentar por volta do ano 2000, conta Adélia Borges, depois do estabelecimento, nas décadas anteriores, dos “modernariatos”, antiquários na Europa e nos Estados Unidos especializados em mobiliário moderno escandinavo e italiano. “O Brasil surge como um novo país que tinha também um móvel moderno muito expressivo. É nesta virada de século que alguns leilões nos Estados Unidos começam a colocar móveis de Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues e Zanine Caldas.”

Com a proibição do comércio do jacarandá, móveis de época feitos com essa madeira ficaram mais valorizados e difíceis de achar. Além disso, com a globalização, os brasileiros começaram a ter mais autoestima e os fluxos culturais passaram a ser mais multidimensionais, acrescenta Borges, de forma que Nova York, Londres e Paris não são mais as únicas cidades a ditarem as regras do bom gosto.

Em paralelo, lembra Borges, houve o esforço das lojas de rua da alameda Gabriel Monteiro da Silva —centro do design de luxo em São Paulo—, que deram destaque em suas vitrines para o mobiliário moderno nacional, deixando um pouco de lado a oferta de peças importadas vigente até os anos 1990. Ela dá como exemplos a Etel e também a Dpot, que relança as obras de Figueiredo e Barros.

Todos esses fatores geraram uma mudança de mentalidade no público, como lembra Carlos Carvalho Fernandes, arquiteto que trabalhou no escritório de Zalszupin na década de 1980. “Antes você tinha que ter duas poltronas Barcelona do Mies van der Rohe em casa. Duas, uma só não servia. Hoje você tem que ter esses caras —uma Mole ou uma Jangada.”

Jean Gillon: Artista-designer

Bernardo Figueiredo: designer e arquiteto brasileiro

  • Quando De 17 de julho a 12 de dezembro; visitação de terça a domingo, das 10h às 18h
  • Onde Museu da Casa Brasileira, av. Faria Lima, 2705, São Paulo
  • Preço R$ 15; gratuito às terças-feiras

Geraldo de Barros – Imaginário, Construção e Memória

(Entre)tempos: Tributo a Jorge Zalszupin

  • Quando Até 30 de junho
  • Onde Na casa de Jorge Zalszupin, em São Paulo
  • Preço Grátis; necessário agendar pelo e-mail design@etel.design

Jean Gillon: artista-designer

Bernardo Figueiredo: designer e arquiteto brasileiro

  • Quando Disponível a partir de 17 de julho
  • Preço R$ 139
  • Autor Amanda Beatriz Palma de Carvalho, Karen Matsuda, Maria Cecilia Loschiavo dos Santos
  • Editora Olhares
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.