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Quem é o ucraniano Ilia Kaminski, que narra guerra em que todos ficam surdos

'República Surda', do escritor que vem ao Brasil para a Flip, fantasia a resistência a uma invasão militar

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Bruna Meneguetti
São Paulo

Em "República Surda", o escritor ucraniano Ilia Kaminski concilia opostos: prosa e verso, guerra e paz, passado e presente.

Usando elementos do teatro, como a divisão em atos, a obra é uma reunião de poemas escritos ao longo de 15 anos e que formam um conjunto narrativo único, como nos épicos da Antiguidade, para tratar da opressão em uma cidade sitiada.

O escritor Ilia Kaminski, que vem à Flip 2023 e é autor de 'República Surda' - Cibele Knowles/Divulgação

Talvez seja reflexo da trajetória do autor: nascido em família judia na cidade de Odessa, antigo território soviético, ele emigrou para os Estados Unidos em 1993.

"Eu queria escrever um livro que dialogasse com ambos os lugares: a Ucrânia soviética, de onde sou, e San Diego, na Califórnia, onde eu morava na época", afirma o autor, que está confirmado na próxima Festa Literária Internacional de Paraty, em novembro.

A trama de "República Surda", primeiro livro de Kaminski publicado no Brasil, com tradução de Maria Cecilia Brandi, se passa na cidade fictícia de Vasenka, durante um conflito sobre o qual os leitores nada sabem, mas que se parece com muitas invasões contemporâneas.

Quando um casal de marionetistas desafia a autoridade do exército que ocupa o país, uma criança surda cede ao riso —um riso que se estende, sem que ela perceba, mais do que deveria. A criança é morta a tiros por um soldado e, a partir da deflagração desse início traumático, os habitantes de Vasenka se tornam todos surdos, quase como em uma versão auditiva do livro "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago.

No entanto, o escritor português enxergava normalmente, enquanto Kaminski, assim como seus personagens, tem deficiência auditiva.

"A fabulação é a resposta óbvia. Odessa é um lugar que tento visitar todos os verões e que visitei durante a guerra, enquanto bombardeios ocorriam. Como falar sobre isso e sobre a realidade nos Estados Unidos, que tem muita violência, mas finge não ter? Para mim, que vim da tradição do Leste Europeu, fabulismo e realismo mágico cruzam facilmente as fronteiras."

Esses elementos fantásticos como metáfora da opressão real permeiam "República Surda" o tempo todo. "Surdez não é doença! É uma posição sexual!", grita Mamãe Galya, uma das personagens mais incisivas na resistência aos militares, como se a deficiência recém-adquirida pelos habitantes da cidade fosse uma opção. O uso do verbo "ouvir" em contextos específicos da obra também sugere uma audição seletiva.

Por vezes, os leitores podem se perguntar se a surdez dos habitantes é genuína ou apenas um mecanismo de defesa para evitar contato com os soldados invasores —ou seja, uma forma de agredir as autoridades ao fingir que as ordens não são escutadas. Por vezes, a surdez coletiva de Vasenka também soa como uma forma de se alienar do que acontece.

"Nossa realidade, assim como a do meu livro, é tão mística quanto em tempos medievais. Nós apenas nos recusamos a ver isso", afirma Kaminski. "O Leste Europeu é o berço de Nikolai Gógol, Sholem Aleichem, Isaac Bábel, Franz Kafka e outros. Esses escritores criaram uma dinâmica ficcional por meio da qual uma fábula, um conto de fadas ou uma fantasia podem tratar da urgência do presente, mas também permitem tomar um café com os mortos."

No livro, os principais atos de insurreição e resistência são protagonizados por marionetistas. Para além das chaves de interpretação que a manipulação de fantoches permite, o autor argumenta que o teatro de marionetes tem sido, através dos séculos, uma das formas de arte mais democráticas.

"Elas costumam ser a ferramenta que traz críticas ácidas, direcionando o riso àqueles no poder. Muitas vezes na história, foram culpadas por incitar revoluções e foram proibidas. Países como a Inglaterra, Portugal, Alemanha e França tiveram leis criminalizando marionetistas."

O escritor conta que nos gulags, campos de trabalho forçado da União Soviética, prisioneiros penduravam marionetes em suas janelas sempre que algum deles era executado ou morria de exaustão, algo semelhante ao que ocorre em seu livro.

Não à toa, a cidade de Vasenka é frequentemente tratada na obra como um "palco", o que remete tanto à esfera dramatúrgica quanto à expressão "teatro de guerra" ou "teatro de operações", que designa o local que compreende eventos militares.

Apesar do asfixiante retrato que Kaminski faz do cenário de conflito, a violência permanece mesmo após o armistício. No livro, guerra e paz não são tão diferentes.

Em tempos de paz, a brutalidade policial e a arbitrariedade militarista ainda imperam em Vasenka. Embora ressaltar a violência de épocas pacíficas pareça pessimismo, "República Surda" mostra também que, durante os confrontos, a vida continua a seguir seu curso.

"No Ocidente, leitores e críticos costumam rotular a poesia escrita durante a guerra de ‘política’ ou ‘testemunhal’", comenta Kaminski. "A parte da mentalidade ocidental com a qual não me sinto confortável é a que pensa sobre a poesia de testemunho como algo que retrata apenas tragédias, ruína, horror."

"O que vejo na Ucrânia é que as pessoas se apaixonam, tentam viver da melhor forma que podem", continua o poeta. "Ajudam seus pais, educam seus filhos, cuidam de suas casas e de suas vizinhanças. Meus poemas não estão interessados na guerra, mas em como as pessoas tentam viver a despeito dela: estou atraído pela sobrevivência."

República Surda

  • Preço R$ 69,90 (168 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Ilya Kaminsky
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Maria Cecilia Brandi
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