'Anatomia de uma Queda' abre a Mostra com retrato da morte de um casamento

Filme que segue investigação criminal tornou Justine Triet a terceira mulher da história a vencer a Palma de Ouro em Cannes

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Sandra Hüller e Milo Machado Graner em cena do filme

Sandra Hüller e Milo Machado Graner em cena do filme "Anatomia de Uma Queda", de Justine Triet Divulgação

Cannes (França)

Um corpo estirado no chão encharca a neve, tingindo de vermelho a palidez daqueles Alpes transformados em cena do crime. Há uma janela logo acima, no chalé isolado onde se refugiam as únicas três testemunhas daquela morte —um cachorro, uma criança e uma mulher.

Não demora muito para que ela vire a principal suspeita da investigação que se desenrola em "Anatomia de uma Queda", que por duas horas e meia faz o espectador questionar se aquele cadáver é fruto de um acidente, de um suicídio ou de um assassinato. E, se confirmada a terceira hipótese, um cometido no calor do momento ou friamente planejado?

Construída com cuidado, a investigação rendeu a Justine Triet a Palma de Ouro no Festival de Cannes —a terceira para uma mulher— e chega ao Brasil para abrir a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nesta quarta. Em novembro, o filme também passa no festival Varilux.

"Eu nunca imaginei alcançar esse nível de reconhecimento. É um prêmio que eu continuo saboreando, meses depois", diz Triet à reportagem.

A inauguração da Mostra é só para convidados, mas o longa terá quatro sessões abertas ao público, entre esta quinta e o dia 1° de novembro, quando a programação com 360 filmes de 96 países chega ao fim.

Os destaques incluem, ainda, outras sensações vindas de Cannes, como "Zona de Interesse", de Jonathan Glazer, "Ervas Secas", de Nuri Bilge Ceylan, "Folhas de Outono", de Aki Kaurismäki, "La Chimera", de Alice Rohrwacher, e o nacional "A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora.

"Afire", de Christian Petzold, premiado com o Urso de Prata em Berlim, e "No Adamant", de Nicolas Philibert, Urso de Ouro no mesmo festival, também estão na lista. De Veneza, há "O Mal Não Existe", de Ryûsuke Hamaguchi, e "Maestro", de Bradley Cooper.

Uma rara unanimidade no festival francês, "Anatomia de uma Queda" só incomodou com sua Palma quem preferia ver a atriz Sandra Hüller premiada —em Cannes, um mesmo filme não pode ganhar mais de um prêmio principal.

Protagonista ainda de "Zona de Interesse", a alemã foi ovacionada pelo trabalho como a suspeita de matar o marido. Também chamada Sandra, a personagem é apresentada na aconchegante sala do chalé, em entrevista a outra mulher.

Logo entendemos que ela é autora de livros policiais, que se inspiram em sua vida pessoal. Mas a conversa inteligente é interrompida pelos sons banais de uma música de 50 Cent, tocada em volume ensurdecedor por seu marido.

Justine Triet recebe a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em maio - Christophe Simon/AFP

Já não é possível continuar a entrevista. Sandra se recolhe, e o filho do casal, que perdeu boa parte da visão num acidente, sai para passear com o cachorro, sua única companhia naquele cenário inóspito cercado por montanhas.

Quando volta, o menino percebe o corpo ensanguentado do pai e grita pela mãe. É ela quem chama a polícia, aos prantos. Nem por isso deixa de ser considerada suspeita, seja pela ausência de outros adultos no lugar, pelas coincidências entre a morte e seus livros ou pela crise matrimonial que, aos poucos, fica óbvia.

Não é só à queda literal do corpo que o título faz referência, mas a seu casamento. "Anatomia de uma Queda", ironicamente escrito por um casal, a própria Triet e o diretorroteirista Arthur Harari, ainda encontra tempo para brincar com a inversão de papéis de gênero.

É Sandra a metade bem-sucedida na carreira, a que se aventura em infidelidades, a que terceiriza os cuidados com o filho e, descobrimos, a que tem um lado agressivo. Tudo isso entontece a bússola moral do espectador.

"Eu queria fazer um filme sobre dúvida. O público fica na mesma posição do júri, do filho de Sandra, e precisa ir tirando suas próprias conclusões. O filme foi construído a partir da dificuldade que temos em compreender a verdade, algo que nos escapa constantemente. Seria mais fácil reduzir Sandra a uma figura e seu marido a outra, mas esses personagens são mais complexos. É um filme que é o oposto de um tuíte nas redes sociais", diz Justine Triet.

"Vemos Sandra como uma pessoa potencialmente violenta porque ela é criativa. Ela tem um ponto de vista sobre o mundo, algo normalmente reservado aos homens. E, enquanto espectadores, nos acostumamos a ver mulheres apenas como vítimas no cinema. Enquanto mulher e cineasta, não queria reforçar isso."

"Anatomia de uma Queda" pode ser dividido em duas partes. A primeira é a do crime. A segunda transforma o longa num drama de tribunal, gênero masculinizado que tende a ser pouco dinâmico, mas que, com a filmagem assertiva e os diálogos cortantes de Triet, não tem dificuldade para envolver o espectador.

Tanto que a produção se tornou um sucesso comercial na França. Com a bilheteria, as críticas e a Palma de Ouro a seu favor, parecia natural que o longa fosse a escolha do país para tentar uma indicação ao Oscar de filme internacional. Mas o órgão responsável pela escolha preferiu "O Sabor da Vida", de Anh Hung Tran.

Estrelado por Juliette Binoche, o filme é uma carta de amor à tradição gastronômica do país, mas excessivamente doce diante do amargor de "Anatomia de uma Queda".

A decisão vem sendo criticada por alguns membros da classe cinematográfica francesa, que veem na escolha uma represália, depois de Triet ter criticado o governo em seu discurso em Cannes, em meio aos protestos contra a reforma previdenciária do país e ao que chamou de uma mercantilização da cultura francesa. A fala gerou ruído entre esquerda e direita nas redes.

Triet prefere não comentar o assunto, mas ao ser questionada se haveria fundo político na escolha de um filme em detrimento do outro, uma carga de opinião como a que manipula o julgamento de "Anatomia de uma Queda", ela é direta. "Prefiro nem imaginar isso."

Anatomia de uma Queda

  • Quando Mostra de Cinema de São Paulo: Dias 19, 25 e 31 de outubro e 1° de novembro. Estreia nos cinemas em 22 de fevereiro de 2024
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Sandra Hüller, Swann Arlaud e Milo Machado Graner
  • Produção França, 2023
  • Direção Justine Triet
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