Se no ano passado a cerimônia de premiação do Festival de Cannes foi marcada por surpresas, com poucos saindo de mãos abanando, a deste ano ficou no esperado. "Anatomie d'une Chute", ou anatomia de uma queda, uma das poucas unanimidades desta 76ª edição, garantiu a Justine Triet sua primeira Palma de Ouro.
Ela é a terceira mulher da história a receber a honraria, depois de Jane Campion e Julia Ducournau, diretora de "Titane" que integrou o júri deste ano. É especialmente interessante que a marca tenha sido alcançada com uma trama que inverte papéis de gênero ao buscar a solução para uma morte suspeita.
"Este é o filme mais pessoal que eu já escrevi, então gostaria apenas de dizer que estou alegre de ter feito um filme, porque meu produtor queria uma série", disse Triet, antes de denunciar o que chamou de repressão chocante aos protestos contra a reforma previdenciária na França.
O longa, também chamado pelo nome inglês, "Anatomy of a Fall", é estrelado por Sandra Hüller e mostra o julgamento de uma escritora de autoficção, suspeita de ter assassinado seu marido. A única testemunha é o filho do casal, que vai pescando memórias do fatídico dia ao longo do processo.
Triet dá aos subgêneros criminal e de drama de tribunal um olhar feminino ímpar, que confere frescor a uma história que poderia soar genérica. Sem esforço, hipnotiza o espectador, que se questiona a todo instante, como num "Dom Casmurro", se a protagonista matou ou não o marido.
O grande prêmio e o prêmio do júri, espécies de segundo e terceiro lugares, foram para "The Zone of Interest", de Jonathan Glazer, e "Fallen Leaves", de Aki Kaurismäki. Ambos também foram amplamente aplaudidos no festival, deixando a trinca de laureados de 2023 praticamente imune a reclamações.
Tran Anh Hung, que com maestria gravou deliciosas cenas culinárias em "La Passion de Dodin Bouffant", foi eleito melhor diretor. Yuji Sakamoto, o melhor roteirista por "Monster", uma história fragmentada que, quando se encaixa, leva o espectador a uma explosão de sentimentos.
Este prêmio, apresentado por John C. Reilly, foi marcado por um pequeno protesto do ator americano, que demonstrou seu apoio aos roteiristas de Hollywood atualmente em greve, depois de ficar alguns segundos em silêncio no palco só para dizer que, sem eles, os filmes seriam assim.
Kôji Yakusho, de "Perfect Days", longa de Wim Wenders, confirmou o favoritismo e levou melhor ator, num ano escasso de grandes atuações masculinas, e Merve Dizdar, pelo turco "About Dry Grasses", melhor atriz, numa corrida feminina mais glamorosa e com desfecho inesperado.
Entre os curtas, "27", de Flóra Anna Buda, ficou com a Palma e "Fár", de Gunnur Martinsdóttir Schlüter, com uma menção especial. A Câmera de Ouro, dedicada aos filmes de estreia, ficou com "L'Arbre aux Papillons d'Or", de An Pham Thien.
"Firebrand", produção britânica que teve direção do cearense Karim Aïnouz, ficou sem nada depois de uma recepção morna no festival. Outra brasileira, Carol Duarte, do italiano "La Chimera", estava ainda no páreo na categoria de atriz.
Presidido pelo sueco Ruben Östlund, que no ano passado entrou para o seleto grupo de cineastas com duas Palmas de Ouro no currículo, graças a "Triângulo da Tristeza", o júri deste ano foi composto por Ducournau, Maryam Touzani, Denis Ménochet, Rungano Nyoni, Brie Larson, Paul Dano, Atiq Rahimi e Damián Szifrón.
Ao todo, 21 filmes concorriam ao mais prestigiado prêmio do circuito de festivais de cinema. Vale lembrar que, diferentemente do Oscar, em Cannes um mesmo longa não pode ganhar a Palma e outro prêmio oficial –Palma Queer, por exemplo, não entra na regra.
Esta última, dedicada a produções com temática LGBTQIA+, foi entregue nesta sexta-feira (26) a "Monster", de Hirokazu Kore-eda, e ao curta "Boléro", de Nans Laborde-Jourdaa. Presidente do júri queer, o cineasta John Cameron Mitchell se pôs a cantar em japonês após a entrega para homenagear o premiado, num momento etéreo e tão bizarro quanto seus filmes.
Na mesma noite, "How to Have Sex", de Molly Manning Walker, levou o troféu da seção paralela Um Certo Olhar, que ainda distribuiu láureas a "Augure", que ficou com o prêmio nova voz; "Goodbye Julia", com o liberdade; "The Mother of All Lies", com o de direção, e "Hounds", com o do júri. O brasileiro "A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora, levou o de melhor equipe.
Outra produção nacional, "Levante", de Lillah Halla, recebeu o prêmio de melhor estreia da Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema, mais cedo neste sábado. A associação também deu troféus a "Los Colonos", na mostra Um Certo Olhar, e "The Zone of Interest", na competição oficial
Nesta 76ª edição, o Festival de Cannes diminuiu o tom político do ano passado, marcado por uma Guerra da Ucrânia ainda recente e que suscitou diversos debates, seja na controvérsia em torno de filmes russos, em invasões ao tapete vermelho, na aparição surpresa de Zelenski ou nas bandeiras azuis e amarelas que pendiam das janelas da cidade.
Houve manifestação contrária ao conflito por parte de uma mulher que jogou sangue falso sobre seu corpo, coberto com as cores da Ucrânia. Os brasileiros de "A Flor do Buriti", por sua vez, ergueram uma faixa contra o marco temporal no tapete vermelho. Mas os atos foram de pouca reverberação.
Na seleção oficial, no entanto, temas latentes e que concentram polêmicas estiveram presentes em peso, seja de forma direta ou nas entrelinhas. Xenofobia, racismo, machismo, homofobia e intolerância religiosa deram as caras em boa parte dos longas, na competição ou fora dela, e os premiados mostram, justamente, que o júri decidiu coroar quem tinha estofo político.
Outra temática que contaminou a programação foi saúde mental. Meses depois de o Festival de Berlim dar seu Urso de Ouro a um filme que toca no tema, Cannes escalou para esta edição um leque de produções que também se debruçam sobre ele e sua contemporaneidade.
Na corrida principal, dos 21 filmes exibidos, dez enfrentavam o assunto, com ou sem sutileza, como "Monster", "Black Flies", "Club Zero" e "A Brighter Tomorrow". "The Idol", série exibida em caráter especial, é mais direto ao diagnosticar sua protagonista, logo nos primeiros minutos, com mazelas psicológicas.
Cinema é, afinal, reflexo de seu tempo. E Cannes, o mais importante festival da área, ao dar espaço a filmes mais autorais e reflexivos, é ano a ano um retrato subjetivo dos tempos em que vivemos, normalmente com uma dose de pessimismo, como nesta seleção.
Confira a lista completa de premiados abaixo.
Competição oficial
Palma de Ouro
"Anatomie d'une Chute", de Justine Triet
Grande prêmio
"The Zone of Interest", de Jonathan Glazer
Prêmio do júri
"Fallen Leaves", de Aki Kaurismäki
Melhor direção
Tran Anh Hung, por "La Passion de Dodin Bouffant"
Melhor roteiro
Yuji Sakamoto, por "Monster"
Melhor ator
Kôji Yakusho, por "Perfect Days"
Melhor atriz
Merve Dizdar, por "About Dry Grasses"
Melhor curta-metragem
"27", de Flóra Anna Buda
Menção honrosa para curta-metragem
"Fár", de Gunnur Martinsdóttir Schlüter
Um Certo Olhar
Melhor filme
"How to Have Sex", de Molly Manning Walker
Prêmio do júri
"Hounds", de Kamal Lazraq
Melhor direção
Asmae El Moudir, por "The Mother of All Lies"
Melhor equipe
"A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora
Nova Voz
"Augure", de Baloji
Prêmio Liberdade
"Goodbye Julia", de Mohamed Kordofani
La Cinef
Primeiro lugar
"Norwegian Offspring", de Marlene Emilie Lyngstad
Segundo lugar
"Hole", de Hwang Hyein
Terceiro lugar
"Moon", de Zineb Wakrim
Mostras paralelas
Câmera de Ouro
"Inside the Yellow Cocoon Shell", de Pham Thien An
Melhor documentário (empate)
"Les Filles d'Olfa", de Kaouther Ben Hania
"The Mother of All Lies", de Asmae El Moudir
Palma Queer
"Monster", de Hirokazu Kore-eda
Palma Canina
Snoop, por "Anatomie d'une Chute"
Federeção Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci)
Competição oficial
"The Zone of Interest", de Jonathan Glazer
Um Certo Olhar
"Los Colonos", de Felipe Gálvez
Filme de estreia
"Levante", de Lillah Halla
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