Bob Wolfenson usa a inundação de seu estúdio para mostra de fotografia

Marcas da chuva que deteriorou parte de sua obra em fevereiro de 2020 são agora tidas como intervenção estética nas fotos

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Obra de Bob Wolfenson incluída na mostra 'Sub/Emerso'

Obra de Bob Wolfenson incluída na mostra 'Sub/Emerso' Divulgação

São Paulo

Chovia forte em São Paulo, e o telefone de Bob Wolfenson não parava de apitar. De repente, o fotógrafo, de 69 anos, recebeu uma imagem mostrando três carros ilhados, cobertos por lama e água. Era o estacionamento vizinho ao seu estúdio, que ficava às margens do rio Pinheiros, na Vila Leopoldina, na zona oeste da capital paulista. "Quando vi, pensei ‘ferrou’, perdi toda a minha obra", ele lembra.

Foto para publicidade da Ford incluída na mostra 'Sub/Emerso', de Bob Wolfenson
Foto para publicidade da Ford incluída na mostra 'Sub/Emerso', de Bob Wolfenson - Divulgação

Trinta e seis horas depois, Wolfenson entrou no estúdio com uma equipe de voluntários e pediu para ninguém alterar a desordem do local. Ele sabia que a tragédia ensejaria um projeto, desvelado agora pela mostra "Sub/Emerso", na galeria Senac Lapa Scipião.

"Tempestade inunda e trava São Paulo", diz a manchete deste jornal daquele 11 de fevereiro de 2020. A edição está no centro do espaço expositivo, onde se sucedem, afixadas, 30 fotografias de diferentes estilos e períodos da carreira do fotógrafo. "Eu sou os temas que perpassam a mostra, eu e a minha atividade profissional e artística", ele afirma. "Essas fotos ganharam um novo significado depois da enchente."

As obras de "Sub/Emerso" refletem as disciplinas exercidas pelo fotógrafo. São ensaios de moda, peças publicitárias e, claro, retratos, gênero que notabilizou sua produção artística. As imagens se filiam pelo contexto em que ressurgiram. Afinal, o próprio autor diz que as fotos agora expostas não figuravam entre as mais importantes de sua coleção.

Todas, porém, têm a marca da intervenção involuntária da força da natureza. Numa das invasões, a água transformou as fotos de um editorial de moda, feito em 2001 para o site da Globo, em uma pintura surrealista. Na época, a produção caracterizou a modelo da vez como Luz Del Fuego, a mítica atriz e bailarina que causou furor nos anos 1950 com sua atitude feminista.

Ao redor da modelo, desfigurada pela água, se insinua o corpo de uma serpente. O ambiente kitsch é composto por velas, pérolas e brilhantes. As cores se misturam, radiantes, quase alucinógenas.

A foto ao lado data dos anos 1980, uma peça encomendada para integrar o calendário da Ford. Dezenas de modelos, as "new faces", no jargão da moda, se apinham num carro. Uma delas é Luana Piovani. Ao fundo, a paisagem desértica, idêntica aos filmes de faroeste, é recortada por manchas pretas de água.

Feita em Itaquaquecetuba, nos arredores de São Paulo, a foto em preto e branco tem aura beatnik. As modelos dentro do automóvel sem direção, parado no meio do nada, parecem até compor uma cena do livro "On the Road", clássico do escritor americano Jack Kerouac, publicado em 1957. Já entre os retratos incluídos em "Sub/Emerso" estão as imagens do arquiteto Oscar Niemeyer, do dramaturgo Ariano Suassuna e da atriz Fernanda Torres.

Com uma força-tarefa empreendida pelos restauradores do Instituto Moreira Salles, o artista conseguiu reduzir os danos provocados pela enchente, que atingiu 80% do catálogo. Ao todo, ele estima ter pedido 5% da obra que lá estava, entre livros raros e obras em papel.

Em 2005, o mesmo estúdio já havia sido inundado. Na ocasião, Wolfenson estava lá no momento da enchente e resgatou o material com a ajuda de um bote. Agora, ele trabalha num outro espaço, na Vila Romana, também na zona oeste de São Paulo.

Filho de comerciantes, Wolfenson nasceu numa família judaica, no Bom Retiro. Santista orgulhoso, jogava bola com as crianças do bairro, judeus versus católicos. "Tudo o que faço, lá no fundo, é porque eu sou judeu. É um traço definidor de quem eu sou", diz.

Aos 16 anos, a morte de seu pai o forçou a trabalhar como assistente de Chico Albuquerque, pioneiro da fotografia publicitária no Brasil. Formado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo, o artista rumou até Nova York, onde trabalhou com o fotógrafo de moda Bill King. De volta ao Brasil, fez ensaios para as revistas Vogue, Harper’s Bazaar e Playboy.

Em 1996, sua carreira teve um ponto de inflexão com a mostra "Jardim da Luz", no Masp, o Museu de Arte de São Paulo. Wolfenson passou a ser conhecido como retratista das personalidades, tendo registrado o poeta João Cabral de Melo Neto —que odiava ser fotografado—, o jogador Pelé e o cantor e compositor Chico Buarque.

O uso da luz natural e a rapidez das sessões foram determinantes para a formação de sua linguagem. "Todas as pessoas fotografam bem. É uma balela dizer que o tímido não pode ser bem retratado. Todo mundo é passível de ter bom retrato, inclusive quem não quer ser registrado", diz Wolfenson, que denuncia os clichês da profissão.

"As pessoas querem intelectualizar a fotografia. Esse negócio de o retrato capturar a alma é uma bobagem. Não quero captar nada além do momento que nunca mais vai se repetir. Que alma é essa que você vai captar? Você não vai desvendar as profundezas de ninguém. E isso não me incomoda. Um conjunto de fotos diz muito mais sobre o autor dessas imagens."

Com o tempo, Wolfenson passou a documentar os políticos do país, entre eles Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. Segundo o fotógrafo, não há diferenças entre artistas e políticos num set fotográfico.

"É só ligar a câmera que o histrionismo deles aparece", afirma. "Mesmo se você estiver diante de um canalha, existe uma cumplicidade humana, que permite a realização do seu trabalho. Sequestrado por esse sentimento de humanidade, você isenta a sua opinião."

Em paralelo, Wolfenson se manteve distante do retrato, apresentando a mostra "Antifachada", de 2004, sobre o caos urbano de São Paulo, e a série "Belvedere", de dez anos atrás, com memórias da infância. Por isso, o artista rejeita ser enquadrado como retratista.

Wolfenson, de todo modo, pensa haver uma banalização da imagem na era do Instagram, o que não habilita qualquer um a se dizer fotógrafo. "Nunca houve tantas fotos ruins como as de hoje. Muitas pessoas sabem escrever, mas poucos são escritores", diz. "O mesmo princípio vale para a fotografia. Você precisa ser excepcional."

Sub/Emerso

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