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Han Kang recria a irmã que viveu só duas horas em 'O Livro Branco'

Autora sul-coreana de 'A Vegetariana' evita clichês do luto, mas dissolve a obra em imagens rarefeitas

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Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

O Livro Branco

  • Preço R$ 64,90 (160 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Han Kang
  • Editora Todavia
  • Tradução Natália T. M. Okabayashi

A sul-coreana Han Kang escreveu duas das três partes que compõem "O Livro Branco" em Varsóvia, na Polônia, onde morou durante uma residência literária.

A experiência a pôs em contato com a materialização da convivência entre o vivo e o morto: destruída por Hitler em um ataque aéreo brutal em 1944, a cidade é apresentada como uma mistura entre prédios reconstruídos —portanto "falsos" em sua história centenária—, e uma espécie de costura entre as parcas ruínas preservadas e as paredes que se ergueram a partir delas.

mulher sul-coreana
A sul-coreana Han Kang, autora de 'O Livro Branco' - Jean Chung/Divulgação

"Os limites que dividem a antiga parte inferior e nova parte superior, e as linhas que testemunham a destruição, ficam expostos de forma evidente", descreve ela.

A visão a leva à recordação de um episódio ocorrido três anos antes de seu próprio nascimento: Han conta que sua mãe, aos 22 anos, deu à luz sozinha, em casa, uma filha que nasceu prematura e morreu duas horas depois.

O que a autora tece então, ao longo de "O Livro Branco", é a costura entre a imagem dessa irmã espectral e a existência que ela conquista por meio da lembrança e da elaboração em linguagem.

É por meio dos passos concretos da irmã viva que caminha pela cidade coberta de neve, mas também das palavras da escritora, que a bebê "que parecia um bolinho de arroz em forma de lua" toma corpo, vivendo uma vida que não pôde experimentar.

Esse corpo é mais evocado do que reconstruído, por meio de um paralelo com a linha divisória que marca a sutura dos edifícios de Varsóvia.

No caso da irmã prematura da narradora, essa linha é trazida alegoricamente pelo branco, apresentado nas páginas por meio de objetos e imagens dessa cor, como cabelo, onda, cão, sorriso.

Assim, enquanto o episódio do nascimento, breve vida e morte da bebê é contado de forma direta e dolorida, sua "vida" literária se apresenta em dicção lírica, em linguagem contida e quase exasperante em sua delicadeza fria, bem trazida ao português por Natália T. M. Okabayashi.

Han converte a dificuldade de narrar o luto extemporâneo em imagens que evocam a perda e a dissipação. Evita, com isso, o clichê modernista de afundar na consciência da incomunicabilidade da experiência, ainda mais tentador quando se trata de uma experiência de negatividade.

Ao mesmo tempo, a autora não desvia de seu objeto, usando o motivo da irmã morta para tratar da realidade da própria vida, como se observa no livro de temática semelhante escrito por Annie Ernaux, "A Outra Filha", lançado há pouco no Brasil.

Se é inviável escrever objetivamente sobre esse bebê que não viveu mais que duas horas, que só restou enquanto fato no relato do trauma da mãe, fale-se de outros eventos, que guardem com aquele o fio sutil da brancura, do gélido, da impermanência.

Ao mesmo tempo, a experiência de contar o trauma pessoal a leva ao coletivo, fazendo-a questionar a força da história não contada de violência política em sua Coreia do Sul natal.

Ligando as experiências, Han propõe uma questão definidora de sua própria existência: como olhar o presente sabendo que ele é consequência de uma tragédia passada? Como lidar com o fato de que sua própria vida não existiria caso aquela criança houvesse sobrevivido?

Usando da estratégia, que já vem se tornando banal na literatura contemporânea, de mostrar o processo de escrita em justaposição ao produto final, a autora torna manifesta a impossibilidade de responder a essas questões.

O impacto de "O Livro Branco" vem da conjuração dessa angústia sem apelar a uma linguagem dramática ou violenta. Esse impacto, porém, se desintegra na reiteração das imagens de dissolução, reforçada pelo deslocamento eventual da narração para uma terceira pessoa que mimetiza o frágil limite entre vida e morte, presente e passado.

"E ela muitas vezes esqueceu que seu corpo (o de todos nós) é uma casa de areia que se esfarelou e se esfarela." Em passagens como essa, é inevitável pensar que o próprio romance "O Livro Branco" é uma obra tão delicada, tão rarefeita que às vezes não resiste e se desfaz em nada.

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