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'Incompatível com a Vida' envolve com visão visceral do aborto

Eliza Capai usa a própria história para ilustrar diversas faces da interrupção da gravidez no Brasil em documentário

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Incompatível com a vida

  • Quando 16 de novembro em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza e Manaus
  • Classificação 14 anos
  • Produção Brasil
  • Direção Eliza Capai

"Incompatível com a vida" foi a frase ouvida por Eliza Capai quando fazia o ultrassom que confirmaria as condições de saúde do seu não nascido filho. O feto, que se formara com um "buraco" na cabeça, como explicou à própria mãe, não sobreviveria.

A frase deu nome ao novo longa da diretora, que constrói uma obra envolvente em que usa a própria história como o recurso central da estrutura narrativa do filme. A perda gestacional e o luto criam o cenário ideal para discutir o aborto como problema de saúde pública, ao passo que dão vazão para que seja delicadamente destrinchada a desolação vivida por mulheres que gestam fetos com má formação e não tem o acesso garantido ao procedimento pela lei brasileira.

Capai engravida durante a pandemia de coronavírus. Começa a filmar sua gestação como registro pessoal, sem intenção de ganhar as telas. Porém, ao descobrir a má formação fetal, "além de cair no abismo", como relatou a esta Folha, pensou que esse seria um filme que faria "se não fosse a personagem". Cedeu, porém.

Cena do filme 'Incompatível com a Vida', de Eliza Capai
Cena do filme 'Incompatível com a Vida', de Eliza Capai - Divulgação

Na obra, que foi ganhadora do festival É Tudo Verdade e está qualificada para o Oscar 2024, a documentarista acerta ao recontar sua história em uma costura com a vivência de outras seis mulheres que passaram por situações semelhantes. A forma como o roteiro é conduzido aproxima as mulheres de quem assiste, mas não prende o tempo todo.

O tema que dá tom à obra, o aborto, demora a chegar em meio a relatos que se arrastam e, se diminuídos, talvez tivessem mais impacto. Passado o ápice, com o assunto já bem trabalhado, algumas falas perdem força na tentativa de seguir dando voz e cor à dor daquelas mulheres.

A presença quase onipresente de Capai, porém, equilibra questões escolhidas na construção do roteiro que podem deixar a desejar. Ela se torna a personagem central e nos envolve com sua história. É quem queremos ver, entender e saber. Tudo sobre sua vida, da concepção ao aborto, do matrimônio feliz ao fim do casamento, parece interessar.

Com depoimentos e imagens marcantes, a diretora cria uma narrativa dramática que mostra o sofrimento individual das mulheres retratadas como fruto de problemas coletivos, políticos e sociais. As diferentes classes sociais de cada uma delas cria subsídio para evidenciar que a confluência de sentimentos de medo, frustração, impotência e abandono são temas comuns ao acontecimento.

Os depoimentos se misturam com as cenas da vida privada de Capai, do dia a dia das mulheres e do mar. No visual, acerta ao colocar o oceano como figura de linguagem, usando a agitação das águas para ilustrar a instabilidade da gravidez, os medos causados pelas más notícias e o sufocamento evidente por meio de cenas de afogamento, que também ganhou a capa do longa. Quando se despede do filho, pouco antes do aborto, está nas águas correntes de uma cachoeira.

Capai retrata sua perda mostrando de forma visceral o resultado dos medicamentos abortivos no seu corpo. Desnuda, embaixo do chuveiro, ela grita, e apresenta o efeito literal e metafórico da perda gestacional sobre diversas dimensões no seu corpo. Seu parceiro, personagem constante em toda a obra, participa de parte desses momentos como pilar de suporte a uma perda que somente a mulher sabe qual é.

O longa, que acerta em focar na experiência feminina, com elegância abre espaço para a vivência dos parceiros. As quebras de expectativas masculinas, do homem que resolve todos os problemas, e, assim questiona sua própria masculinidade, dá tempero ao enredo.

As violências médicas sofridas pelas mulheres retratadas, sem direito ao aborto legal, mostra o cenário real daquelas que gestam um feto em má formação e, já golpeadas com a notícia de que seus filhos são incompatíveis com a vida, percebem que estão em um não-lugar, onde nada pode ser feito.

No Brasil, a alternativa nos casos de má formação, quando não há chances de sobrevivência, é judicializar a questão. O aborto só é autorizado caso a gravidez represente risco à mulher, seja fruto de violência sexual ou em fetos com anencefalia fatal.

O aborto como problema de saúde pública vira tema na segunda metade do longa, quando a diretora traz à tona a história de uma garota de dez anos que enfrentou protesto e resistência de médicos e grupos religiosos ao tentar interromper a gravidez fruto de estupro. Ela sofrera abusos por anos.

O escárnio vivido pela menina é trançado às histórias das mulheres que não têm o acesso ao procedimento garantido por lei. Assim, Capai consegue mostrar as diferente faces da questão do aborto no Brasil, que possui uma lei restritiva que expõe mulheres a múltiplas violências.

O filme é lançado tanto no Brasil como nos Estados Unidos em um momento em que o debate sobre a legalização do aborto é efervescente. No país americano, o tema se tornou central após a Suprema Corte derrubar a decisão Roe vs. Wade, que colocava o procedimento como direito constitucional. Por aqui, o tema ganhou contorno especial em setembro, quando a ministra Rosa Weber votou pela liberação do procedimento no STF. O tema, inspiração para a diretora pela "raiva" que causa, como relatou, não tem previsão de ser votado novamente na instância superior brasileira.

O aborto de Capai é feito em Portugal, local onde estava morando quando descobriu a má formação fetal. Finaliza o longa contando que, no país, o aborto é decisão da mulher, mas omite informação importante: somente até a décima semana de gestação. Seguindo uma cartilha tradicional de documentários, amarra o final com frases que justificam os meios.

"Em Portugal, o aborto era a terceira causa de morte materna. Isso mudou depois da lei que legalizou a interrupção voluntária da gravidez. Há mais de uma década, nenhuma mulher morrem em decorrência de aborto no país."

Dando o tom político e social à própria história e ao sofrimento das mulheres em situação semelhante, "Incompatível com a vida" mostra que, por mais que a dor da perda gestacional seja uma experiência privada, o Estado tem papel preponderante na construção do trauma ao não garantir acesso adequado a tratamentos de saúde e ao aborto legal.

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