Mostra 'Pequenas Áfricas' esmiúça legado do samba para a formação do Rio

Exposição narra efervescência cultural da comunidade negra carioca com fotografias, documentos e instrumentos no IMS

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São Paulo

Fotografias em branco e preto do começo do século 20 mostram uma zona portuária carioca muito diferente daquela que hoje é demarcada pelos morros da Providência e da Conceição. A quase 2 km do Cais do Valongo, a ampla Praça Onze e seus arredores eram moradia de uma população majoritariamente negra, poucos anos após o fim da escravidão.

Cláudio Camunguelo, Pagode do Trem, Rio de Janeiro, 2000
Cláudio Camunguelo, Pagode do Trem, Rio de Janeiro, 2000 - Arquivo Januário Garcia/Acervo Instituto Moreira Salles

Foi ali que, entre carnavais e arranjos musicais, nasceria o samba carioca com Donga, Cartola e Pixinguinha, acompanhando o ritmo da cidade até se solidificar nas escolas de samba que enchem as avenidas hoje. Longe de ser regular, a linha do tempo do samba inclui conflitos e conquistas narradas por meio de fotografias, objetos e vestimentas na mostra "Pequenas Áfricas: o Rio que o Samba Inventou", no Instituto Moreira Salles.

Mas antes de testemunhar o relato, é preciso passar por um jardim suspenso de ervas sagradas, obra instalada na entrada da exposição pela mãe de santo Celina de Xangô, logo em seguida de uma pequena reprodução do Cais do Valongo —maior porto de escravos das Américas no século 19 e símbolo da tragédia da diáspora. A instalação serve para purificar o ambiente, que não mostrará a dor da comunidade negra, mas o fruto de sua criação, hoje patrimônio nacional.

Foi o sambista e artista Heitor dos Prazeres que, no começo do século, chamou a região de Pequena África. Mas o caldo cultural que se engrossava na área precisou se diluir em outros pontos da cidade quando o governo anunciou a construção da linha férrea e da Avenida Presidente Vargas, na década de 1940.

Angélica Ferrarez, uma das curadoras, não analisa a movimentação urbana como negativa. "Essa população foi se espalhando, e hoje temos uma pequena África na Madureira, no Irajá, Jacarepaguá e Pechincha. Eu gosto de pensar no chão como o de fábrica, no operário do samba. O que está acima do chão é território em disputa", diz Ferrarez.

Não por acaso, a exposição inclui documentos e fotos que mostram como a primeira leva de sambistas reivindicavam a música como profissão, como a carteira de trabalho de Pixinguinha. "Através de muita negociação, essa primeira geração conseguiu transformar o samba em uma ferramenta de trabalho para o seu sustento", diz Vinícius Natal, outro curador.

Muitos encontraram emprego no rádio e em órgãos públicos, enquanto outros se sustentavam com shows em boates e navios. A carteira de trabalho se tornaria mais um espaço político a ser conquistado por uma geração que ainda debatia identidade e cidadania a menos de 50 anos da abolição da escravidão.

O próprio Heitor dos Prazeres, além de sambista, era desenhista e pintor. Responsável por ilustrar diversas rodas de samba na época, algumas de suas obras ocupam as paredes do IMS ao lado das fotografias e documentos de época.

Centenário do rádio no Brasil, Cartola em estúdio de rádio - MIS-RJ/Divulgação

Ainda hoje, questões do mundo do trabalho são pungentes para os sambistas. Enquanto a bateria das escolas de samba é um importante núcleo de ensino e propulsão de músicos para o mercado cultural, as relações trabalhistas dentro das escolas são frágeis. "Não é exclusivo da escola de samba, mas é uma característica da população negra brasileira, que ainda trabalha em condições precárias", diz Natal.

Além de ser uma forma de sustento, as escolas de samba continuam se afirmando como um território de lazer em locais onde, muitas vezes, o estado não chega. "No Rio, em muitos bairros, você tem uma escola de samba e do lado uma igreja evangélica", diz Ferrarez.

A mostra, que conta com dois andares, dedica uma parte do segundo espaço ao "Museu dos Pobres", em homenagem ao nome dado por Maria das Dores Alves Rodrigues, a Dodô da Portela, ao rico acervo que guardava em sua própria casa. "Ela dizia que o museu do pobre era a parede de casa", diz Ferrarez, que conversou com a porta-bandeira em vida. "Era uma estratégia consciente de cuidar do próprio patrimônio".

Fotografias dos membros da escola, muitas sem autoria identificada, se misturam com tecidos e documentos. A parede em frente exibe fotografias de Cartola andando por ruas largas da Mangueira, hoje de vias estreitas, tiradas por Walter Firmo.

Natal lembra que não há instituição pública hoje no Brasil que se dedica a guardar algum acervo do samba. "Não dá mais pra vivermos no arranjo dos sambistas, que buscam estratégias de sobrevivência para a sua própria história", lamenta.

Pintura de 1962 de Heitor dos Prazeres, representado pela galeria Almeida & Dale
Pintura de 1962 de Heitor dos Prazeres, representado pela galeria Almeida & Dale - Sergio Guerini/Almeida & Dale

Realidade essa relacionada, segundo ele, a uma elite que frequenta os caros camarotes das avenidas no carnaval, mas ainda desdenha a cultura popular frente à cultura erudita.

O resto do segundo piso se dedica às mudanças enfrentadas pelo samba carioca a partir da década de 1960, quando alguns sambistas acusaram suas escolas de embranquecimento com a entrada de carnavalescos formados pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Candeia, por exemplo, rompeu com a Portela para fundar o Grêmio Recreativo Arte Negra Escola de Samba Quilombo, com a bandeira dourada que se encontra na mostra. Em carta, ele recusava os títulos "academia" e "palacete" que passam a acompanhar o nome das escolas, e partiu em defesa do povo enquanto protagonista do samba.

No mesmo período, em 1961, Cacique de Ramos fundou a escola que seria berço do pagode moderno e abrigou sambistas como Arlindo Cruz, Beth Carvalho e Zeca Pagodinho. Além das vestimentas e da bandeira, a mostra exibe também instrumentos que nasceram na escola, responsável por reinventar os batuques do samba, como o repique de mão e o tantã.

Uma espécie de árvore genealógica do samba carioca, no fim do circuito, mostra os laços —familiares, musicais e espirituais— criados a partir da música. Muitos nomes, especialmente os de mulheres do começo do século passado, aparecem sem data de morte, nascimento ou fotografia, e suas contribuições foram resgatadas, em parte, por fabulações a partir de suas conexões com homens.

Mas seus legados, seja pelo boca a boca ou por documentos guardados nas paredes de casa, foram passados adiante. "Estamos pensando em um modelo cultural baseado no samba e nas religiosidades afro-brasileiras, e que se espalha pelo Brasil", diz Angela Ferrarez, a curadora. Não por acaso, a exposição chama-se "Pequenas Áfricas", no plural. "Provocamos para que se olhe para São Paulo, Salvador, Olinda, outras cidades, e pensemos em uma cartografia negra da cidade."

Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou

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