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Bia Lessa

Bia Lessa: Danilo Miranda deixou belo projeto, mas não há mais seu abraço

Equipe magistral do Sesc, que o acompanha há anos, dará conta dos desafios, mas como faremos sem o seu olhar particular?

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Bia Lessa

Atriz e diretora brasileira

Sabemos todos a importância do Danilo Santos de Miranda na construção do Brasil. Sabemos que nosso país era um e se tornou outro a partir de sua criação dentro do Sesc em São Paulo. Tenho certeza, também, que a instituição vai continuar com sua força, determinação, engajamento e liberdade.

Ao longo dos anos ele deve ter preparado, na surdina, um futuro sem ele. Seu projeto não era pessoal, seu projeto era ideológico. Sua equipe magistral, que o acompanha há anos, dará conta dos desafios, não tenho dúvida.

Retrato de Danilo Santos de Miranda - Ruy Teixeira/Divulgação

Mas e o Danilo, e nós? Como faremos sem seu olhar? A particularidade daquele olhar, isso perdemos para sempre, o que é muito grave. E a qualidade do abraço? Abraço que dava suporte às nossas angústias perenes.

Decidi não ir ao seu velório. Tentei, andei de um lugar para outro, triste, pensei em estar aí diante de você, Danilo, e do Brasil inteiro que estará se despedindo e agradecendo, mas desisti. Optei pela solidão. Não quero ver ninguém, fui jogar flores no mar.

Essas rupturas são foices. Cortam sem piedade. Cortam como um corte seco —numa montagem de um filme, somem com a cena, acabam drasticamente com o assunto e criam outra narrativa. Penso nessa nova narrativa, o que faremos com ela, que cena colocaremos depois da imagem do Danilo morto no caixão.

Há opções, muitas. Cada um colocará a sua. Penso na minha. Será seguida por uma boca aberta aos gritos que aos poucos desparece num "fade" longo, dando lugar a imagem de um mar azul com poucas ondas e vazio.

Um tempo imenso de mar, uma hora de ondas que se quebram lentamente, um pássaro que passa, o barulho de um navio que apita sem ser visto. No trágico, o tempo para.

Acabo de fazer um filme onde você está presente. Isso nos liga formalmente, embora nossa ligação esteja no pacto do desejo de um trabalho sem fim, sem descanso e sem medo de radicalidades. Sabemos as consequências de sermos o que somos.

Mas você, diferente de tantos, trouxe de surpresa para o mundo uma delicadeza, impossível de não ser admirada. Me pergunto, com frequência, como você pôde ser tão doce e, ao mesmo tempo, tão implacável.

Sabemos que transformações implicam rupturas drásticas, e, no seu caso, a ciência, as leis da física, se apresentam de outra forma. A gravidade passa a não atuar sobre os corpos, a mecânica dos fluidos, toma outros caminhos —o impossível se concretiza sem estardalhaço.

E você move o mundo com serenidade e sem armas de fogo. Mas a transformação acontece e você passa por lutas hercúleas. Foram tantas, provar a importância da cultura, da educação, do esporte e da alimentação para o bem-estar social —de forma conjunta, corpo e alma definitivamente ligados—, ampliar os espaços sociais sem timidez, valorizar a criação, separando o processo criativo da ideia de sucesso imediato, criar espaços físicos que permitam todo tipo de experimentação, lutar permanentemente para que a verba do Sistema S não seja rifada, abrir espaço aos artistas sem descriminação.

O que tenho a dizer, Danilo, é que você criou uma rede dentro e fora do Sesc, que sua construção é sólida, que estaremos presentes, firmes, dando suporte, para que os seus voos sigam cada vez mais radicais.

Seu dever foi cumprido com louvor. Mas, de outra forma, também quero dizer que estou furiosa, que não estou gostando nada de você ter sumido, sem que pudéssemos ter falado sobre isso, sem que eu pudesse ter tirado de você alguma coisa que me acalmasse a dor. E sem que eu pudesse ter abraçado você e ajudado você a passar pelas veredas que o corpo impingiu.

Soube que os últimos dias foram de luta, como não poderia deixar de ser, no seu caso. Recebi uma foto do seu caixão com a bandeira do Fluminense. Não contei para você, estou fazendo o museu do seu time —que surpresa você ser tricolor! Estou completamente apaixonada pelo clube, eles me conquistaram por inteiro.

Há uma sala em que colocarei 14 mil fotos de torcedores. Tomo a Liberdade de colocar uma sua ao lado da minha —assim no mundo dos gols, dos dribles, das injustiças, dos juízes às vezes ladrões, do imponderável, estaremos lado a lado, num diálogo permanente diante da vida.

Danilo, querido, me recuso a me despedir.

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