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Parceria entre Folha e Google Arts & Culture disponibiliza milhares de fotos históricas

De retratos icônicos de Pelé e Ayrton Senna às Diretas Já, acervo ilustra toda a trajetória do Brasil pelas lentes do fotojornalismo

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Pomba pousa sobre faixa durante ato em favor da anistia a exilados e presos políticos, na praça da Sé, em São Paulo, em 21 de agosto de 1979 Jorge Araújo - 21.ago.1979/Folhapress

São Paulo

Milhares de pessoas ocupavam a praça da Sé, em São Paulo, na noite do dia 21 de agosto de 1979. Iluminada pelos postes de luz do começo do século, a multidão clamava pela anistia dos exilados e presos políticos perseguidos pelo terror da ditadura militar, que naquela noite era votada no Congresso Nacional.

Pomba pousa sobre faixa durante ato em favor da anistia a exilados e presos políticos, na praça da Sé, em São Paulo, em 21 de agosto de 1979 - Jorge Araújo - 21.ago.1979/Folhapress

O momento decisivo para os rumos do Brasil estampou a primeira página deste jornal no dia seguinte, com uma fotografia tirada na escadaria da Catedral da Sé. Na imagem, a palavra "exigem" aparece em uma faixa, em primeiro plano, enquanto a multidão está ao fundo. Sobre o tecido, pousa uma pomba branca.

O clique de Jorge Araújo teve grande repercussão e venceu o prêmio Esso de fotografia. Estava guardado em arquivo físico, assim como milhões de outras fotos do acervo do jornal que foram tiradas antes do surgimento das máquinas fotográficas digitais.

A imagem estava entre as fotografias digitalizadas a partir da virada do milênio, mas que ainda eram um número restrito frente à enorme quantidade de imagens existentes no acervo criado ao longo dos 102 anos deste jornal.

A guinada neste processo, porém, ocorreu em 2020, quando a Folha e o Google Cloud firmaram uma parceria para a digitalização de 2,5 milhões de fotos que ajudam a contar a história do Brasil.

Os frutos desse trabalho serão colhidos a partir desta segunda-feira, quando 10 mil fotografias pertencentes ao acervo serão disponibilizadas de forma gratuita no site do Google Arts & Culture, que expõe virtualmente material de instituições como o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, e o Louvre, em Paris. A iniciativa, chamada "Folha: Uma Lente no Brasil", marca a primeira vez que o acervo de um jornal em circulação no mundo é disponibilizado gratuitamente na plataforma.

"Por meio das imagens captadas pelos mais importantes fotojornalistas brasileiros, é possível recapitular eventos que marcaram tanto o desenvolvimento como as mazelas do Brasil", diz Sérgio Dávila, diretor de redação do jornal.

As fotografias, algumas agrupadas em galerias temáticas, incluem testemunhos da expansão urbana de São Paulo e a evolução das favelas brasileiras no século passado e a adaptação de imigrantes no país ao nascimento do hip hop nas décadas de 1980 e 1990.

O piloto brasileiro Ayrton Senna traz ainda a expressão de sofrimento no rosto ao receber o troféu do Grande Prêmio Brasil, no Autódromo de Interlagos, em 1991, sua primeira vitória no Brasil - Jorge Araújo/Folhapress

Retratos icônicos de Ayrton Senna, Pelé, Gilberto Gil e Fernanda Montenegro compõem o hall de rostos que marcaram o imaginário cultural e popular brasileiro dentro e fora do país.

Segundo Chance Coughenour, gerente de programa do Google Arts & Culture e arqueólogo digital, a iniciativa é um bom exemplo de como a tecnologia pode ajudar a tornar o patrimônio cultural acessível a qualquer pessoa no mundo. "Fotos de eventos icônicos ou mesmo do cotidiano brasileiro fazem com que pessoas de outros países desenvolvam uma compreensão mais clara do Brasil e seu povo", diz.

Há também registros de eventos que alteraram o curso da diplomacia mundial. É o caso da galeria dedicada às fotos da Guerra do Iraque, tiradas por Juca Varella. Na época, Sérgio Dávila era correspondente internacional e fez a cobertura do conflito ao lado do fotógrafo. A dupla representava os únicos brasileiros em Bagdá que puderam cobrir o início da guerra.

"Juca Varella foi também um parceiro de sobrevivência. Dezesseis jornalistas morreram nos 35 dias em que estivemos no Iraque. Ele foi um apoio emocional sem o qual a cobertura não teria ocorrido", lembra Dávila.

"Disponibilizar essas imagens ajudará muito com pesquisas, tanto acadêmicas quanto para a produção de documentários", afirma Luiz Rivoiro, coordenador da Folhapress. Mais do que isso, o acervo é uma forma de "valorizar o trabalho dos fotojornalistas" na era das redes sociais como o Instagram e o Pinterest.

Entre os vários cliques que são bons exemplos da sagacidade do olhar do fotógrafo e da esperteza para capturar o momento certo é uma foto de Renato Alves em que Romário, então camisa 11 da seleção, aparece balançando a bandeira brasileira da cabine do piloto do avião que pousava no Brasil após a vitória da Copa de 1994.

O jogador Romário, em 1994, acena com bandeira brasileira na janela da cabine de comando do avião DC-10 após o pouso em Brasília depois da vitória da Copa do Mundo - Renato Alves - 19.jul.1994/Folhapress

"Foi a primeira vez que o Brasil ganhou em muito tempo. E o Romário era um personagem, porque ele desaparecia dos treinos e, quando jogava, arrebentava", diz Ana Estela de Sousa Pinto, hoje editora de Mercado no jornal e editora de Fotografia de 1992 a 1995, durante a transição do equipamento analógico para a tecnologia digital.

Ela conta que, quando os fotógrafos do jornal foram enviados para a cobertura da Copa nos Estados Unidos, estavam em teste o que chamavam de "câmeras Frankenstein". "Era uma câmera de filme acoplada a uma base que permitia a foto digital. Mas a qualidade era muito baixa, os pixels ficavam mais visíveis e parecia que as imagens tinham zoom."

Na mesma época, escaneadores que digitalizavam o filme negativo começaram a ser usados, o que permitiu que as fotos fossem acrescentadas à paginação do jornal pelo computador, e não mais no papel. Antes disso, para que imagens pudessem ser incluídas nas páginas do jornal, era necessário revelar o filme no laboratório do próprio jornal.

Se a fotografia precisasse ser enviada a distância, tinham duas opções. A primeira era usar uma espécie de fax, que enviava a foto em quatro lâminas, cada uma representando uma camada de cores. "Levava 40 minutos para chegar uma foto inteira. Não podia dar problema na transmissão, porque daí perdia o registro. Já aconteceu várias vezes de estar acabando o tempo para fechar o jornal e cair a ligação", lembra Sousa Pinto.

Quando o fotógrafo cobria algum show ou jogo em São Paulo, o método era outro. Motoqueiros contratados ficavam estrategicamente posicionados e, assim que o filme fosse rebobinado, era entregue ao piloto, que o levaria às pressas para garantir a entrada dos cliques na edição do dia seguinte.

O fotógrafo Cesar Itiberê, autor de um retrato icônico de Rita Lee vestida de Nossa Senhora Aparecida durante um show em 1995, disponibilizado no Google Arts & Culture, lembra bem o procedimento. "Uma foto única era a porta de entrada do leitor para o jornal, exibido nas bancas de revista", diz.

A cantora e compositora Rita Lee, vestida como Nossa Senhora Aparecida, em show no evento Hollywood Rock, em 1995 - Cesar Itiberê - 28.jan.1995/Folhapress

Quando tirou a foto premiado com o Esso em 1979, Jorge Araújo já tinha entregado os rolos de filme ao motoqueiro. Precisou pedir para que ele esperasse para dar a partida, porque a pomba branca havia acabado de pousar na faixa que exigia o fim da perseguição política.

Mais tarde, Araújo rodou o Brasil para registrar os comícios pelas Diretas Já. "A Folha que encampou a cobertura das Diretas. Nenhum outro veículo estava falando sobre", diz. Uma das maiores manifestações ocorreu no vale do Anhangabaú, e o fotógrafo registrou a aglomeração democrática do alto de um edifício nas redondezas. "As fotos do alto eram importantes para que pudessem fazer a contagem de pessoas."

Comício pelas Diretas Já na praça da Sé, região central de São Paulo
Comício pelas Diretas Já na praça da Sé, região central de São Paulo - Jorge Araújo - 16.abr.1984/Folhapress

Mas a ditadura ainda persistia, e as ameaças aos jornalistas não eram poucas. "Os militares falavam que, se as Diretas fossem aprovadas, iriam atear fogo às cortinas do Congresso e culpar os jornalistas", diz. Dois dias antes da votação, Araújo chegou a ser preso. "Todo material produzido tinha que passar pela censura. Brasília era uma cidade proibida. Em São Paulo, sempre tinha um carro do Dops em frente à redação."

Segundo o curador Eder Chiodetto, que já foi fotojornalista e editor no jornal, o acesso à fotografia tem impacto direto sobre a perspectiva de indivíduos sobre a história do país. "No Brasil, não conseguimos transmitir questões históricas e nossas fraturas sociais de uma geração para outra", diz.

A existência de pessoas que pedem pela volta do regime militar hoje é um exemplo dessa dificuldade, segundo ele.

A organização fotográfica em acervos, sejam os registros de manifestações políticas ou retratos de personalidades, é um antídoto, segundo Chiodetto, contra o fluxo vertiginoso de imagens aleatórias a que somos submetidos, diariamente, nas redes sociais. "Quando organizamos um acervo, com o espírito daquela época, fazemos um serviço para combater esse apagamento histórico."

Folha: Uma Lente no Brasil

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