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'Folhas de Outono' mistura comédia e romance para retratar tristeza proletária

Filme de Aki Kaurismaki, diretor finlandês celebrado em Cannes por deixar a melancolia engraçada, retrata casal em Helsinque

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São Paulo

Um metalúrgico usa sempre a mesma jaqueta de couro surrada para sair em suas noites livres. Em uma ida ao karaokê, troca olhares e algumas poucas palavras com Ansa, uma caixa de supermercado que também quer se divertir um pouco, depois de um longo dia de trabalho.

Alma Pöysti e Jussi Vatanen em 'Folhas de Outono'
Alma Pöysti e Jussi Vatanen em 'Folhas de Outono' - Divulgação

A atração é imediata, mas ele perde o número de telefone da moça, rabiscado em um pedaço de papel. A partir daí, os dois apaixonados são perseguidos por desencontros dramáticos por obra do destino –que fez cair do bolso da jaqueta surrada o bilhete— e pelo alcoolismo de Holappa, que usa a bebida como escape de um cotidiano padronizado.

Mas "Folhas de Outono" desviou das comédias românticas pasteurizadas, de mocinho procura mocinha. Dirigido por Aki Kaurismaki, considerado o diretor mais importante da Finlândia, a tragicomédia foi celebrada em Cannes, recebeu duas indicações ao Globo de Ouro.

Em tempos áureos para intrigas milionárias em seios familiares fartos, como prova o hit de "Saltburn", de Emerald Fennell, nas redes sociais e o fenômeno da série "Succession", que papou a maioria dos prêmios do Emmy, "Folhas de Outono" destoa. "Essas pessoas não são ricas ou bem sucedidas, mas ainda assim tem histórias muito interessantes para contar", diz a atriz Alma Poysti, que vive Ansa, por videochamada com jornalistas.

Junto de "Sombras no Paraíso", de 1986, "A Mocinha da Fábrica de Fósforos", de 1990 e "O Homem Sem Passado", de 2002, o novo filme compõe a série "Proletário" do diretor, dedicada a retratar a melancolia dos trabalhadores na gélida Helsinque –aquecida, porém, pelos cenários de cores fortes, a ternura tímida dos personagens e pelo sarcasmo, que impede um filme excessivamente politizado.

"O humor é a força que possibilita enfrentar o dia para os personagens de Kaurismaki", diz Poysti, que em 2020 deu vida Tove, criadora dos quadrinhos "Mumin", em "A Vida de Tove Jansson". "As cenas são trágicas e engraçadas ao mesmo tempo. E é assim na vida real também, mesmo quando estamos miseráveis, ainda há algo engraçado nisso", diz Jussi Vatanen, que interpreta Holappa.

O ator lembra de assistir aos filmes de Kourasmaki ainda criança. "Seu estilo de fazer cinema e como um ator deve se portar em seus filmes era claro antes de começarmos", diz, o que facilitou a preparação para o que chamou de "o roteiro mais curto" que já leu, refletido em uma ternura demonstrada mais em gestos e olhares do que nos diálogos breves. "Aki é um homem de poucas palavras, mas tudo estava ali."

Para capturar as expressões dramáticas dos atores, Kaurismaki permitia, no máximo, três repetições de uma mesma cena. "Ele disse, ‘se você errar, podemos fazer dois takes. Se for um desastre, fazemos três’. Foi assustador, mas os momentos ficam intensos e se tornam extremamente honestos. Eu aprendi que quando você repete demais, há uma pequena camada de fingimento", diz Poysti, que chegou a trabalhar como caixa de supermercado e em uma fazenda por algumas semanas, antes de encarnar Ansa.

Kaurismaki parece acenar ao neorrealismo italiano quando mostra a dura realidade de seus personagens, como quando Ansa rouba as sobras do mercado onde trabalha. Não por acaso, um cartaz antigo de "Rocco E Seus Irmãos", de 1960, de Luchino Visconti, é a decoração do bar onde Holappa encontra o amigo para desabafar.

E, com a dramaticidade dos gestos, o diretor ainda dá uma piscadela à Era de Ouro de Hollywood, quando o silêncio entre um casal apaixonado era quebrado por um beijo acompanhado de trilha sonora. Como se os personagens de "Folhas de Outono", despersonalizados por um cotidiano exaustivo e tedioso, pudessem ter seu estrelato através das lentes do finlandês.

"É como se ele estabelecesse um diálogo com os Deuses do cinema. Ele pisca para Charlie Chaplin, Godard ou Jim Jarmusch, mas você não precisa conhecer nenhum deles para apreciar o filme", analisa Poysti. Mas, ainda que desejassem, os protagonistas não estão em Hollywood, e a melancolia reina em Helsinque.

O mesmo desejo não realizado aparece em "Sombras no Paraíso", quando Ilona, protagonista desempregada, diz que seu sonho é ir à Flórida, ou em "O Homem Sem Passado", quando a segurança Irma troca uma música clássica deprimente por um rock agitado depois de fitar longamente à cidade da janela de sua quitinete.

O cenários de cores fortes e amareladas, a decoração da casa dos personagens e a brilhantina no cabelo de Haleppo dão a impressão de que "Folhas de Outono" também se passa na década de 1980, não fosse a transmissão de notícias sobre a Guerra da Ucrânia na rádio de Ansa.

Para Poysti, é certo que Ansa e Holappa estão relacionados aos filmes anteriores do diretor, e assim como em seus antecessores, é no romance que os personagens encontram escapatória para a solidão.

"É quase um filme sci-fi. Como espectador, você não consegue localizar a história no tempo, então precisa esquecer a lógica e só tentar se identificar com os personagens", diz a atriz. "É atemporal. Nunca ficará velho."

Folhas de Outono

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