'Segredos de um Escândalo' tem olhar tragicômico para caso de abuso e obsessão

Novo filme de Todd Haynes tem Julianne Moore como mulher que se envolve sexualmente com amigo adolescente do filho

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São Paulo

Julianne Moore abre a geladeira e fica paralisada. A câmera, num zoom abrupto, se concentra em seu rosto, remexido em dúvida e angústia. "Eu não acho que temos salsichas suficientes", dispara ela, enquanto a trilha sonora corta o silêncio com seu tom alarmista, como se aquele fosse o mais grave drama já enfrentado por sua personagem.

Julianne Moore e Charles Melton em "Segredos de um Escândalo" - Divulgação

Mal sabe o espectador, àquela altura, que a falta de salsichas para o churrasco da família é um problema completamente irrisório perto dos descalabros que a protagonista de "Segredos de um Escândalo" –ou "May December", no original– já provocou ou vai sofrer.

Novo filme de Todd Haynes, a história de tom tragicômico, como a cena que viralizou nas redes mostra, chega aos cinemas brasileiros nesta semana depois de ser exibido nos festivais de Cannes e no do Rio do ano passado e de angariar três indicações ao Critics Choice, quatro ao Globo de Ouro e cinco ao Spirit, numa campanha que tenta chegar ao Oscar.

Talvez a personagem de Moore ache que as indicações, também, não sejam suficientes para um filme que despontou como um dos favoritos da crítica americana, mas que perdeu um tanto de força com aqueles que acharam seu tom exageradamente afetado. É do exagero, no entanto, que surge a graça de "Segredos de um Escândalo", ao se equilibrar sobre uma linha-tênue entre humor e tragédia.

"Eu estava determinado a proporcionar uma relação de reflexão, excitação e mistério entre o espectador e o filme", diz Haynes, diretor que agora combina temas já presentes em sua filmografia –a excentricidade de "Velvet Goldmine", o melodrama de "Longe do Paraíso", as tensões amorosas de "Carol", o borrão entre veracidade e mentira de "O Preço da Verdade", o peso do passado de "Sem Fôlego".

"Qualquer parte estilística do filme, a música, os cortes, o enquadramento, os silêncios, precisava estar superexposta. O desafio era criar um clima que causasse incerteza, mas que ao mesmo tempo permitisse ao espectador sentir prazer ao ir desvendando aquela história".

Essa dubiedade infligida ao espectador deriva das obsessões que contornam "Segredos de um Escândalo". Logo no começo, Elizabeth, uma atriz de sucesso na televisão interpretada por Natalie Portman, chega ao churrasco que Gracie, personagem de Moore, está oferecendo aos amigos.

Há incômodo e tensão instantâneos entre elas –Gracie sabe que a presença de Elizabeth ali é um mal necessário. A atriz, afinal, foi escalada para interpretá-la num longa-metragem sobre seu passado, quando foi presa por engravidar do melhor amigo de escola do filho. Ela tinha 34 anos e ele, 13.

Quem grelha as salsichas é justamente o agora adulto Joe, interpretado por Charles Melton. Depois do escândalo altamente midiático que viveram nos anos 1990 e da prisão de Gracie, os dois se casaram e construíram uma estranha família, em que ele é padrasto de seus ex-amigos de infância.

A atriz vivida por Portman está ali para observar o dia a dia do casal, que inclui receber fezes embrulhadas para presente pelo correio e muita complacência por parte de vizinhos igualmente escandalizados, mas desejosos de um bairro burguês e tranquilo.

Aos poucos, no entanto, o trabalho antropológico se transforma em obsessão, numa relação tóxica entre Elizabeth e Gracie que ecoa a desta última com Joe –no passado e também no presente. Natalie Portman, elogiada pelo trabalho, vai se transformando na própria Julianne Moore, conforme vai absorvendo trejeitos, figurinos e até desejos de sua musa.

A relação entre as duas protagonistas, conta Haynes, buscou inspiração em "Quando Duas Mulheres Pecam", de Ingmar Bergman, enquanto a diferença de idade do casal remete a "Manhattan" e "A Primeira Noite de um Homem". São menções mais classudas que aquelas que dizem que seu filme é "camp".

Rejeitada pelo diretor, a estética que bebe do exagero e da teatralidade foi colada a "Segredos de um Escândalo" por inúmeras manchetes tão logo a obra estreou em Cannes. Haynes, afinal, pesa a mão na trilha sonora, que remete a programas sensacionalistas de crime, usa filtros nas lentes da câmera e brinca com o zoom, forçando o espectador a encarar os personagens como se estes fossem peças de uma exposição, diz.

Todd Haynes, Natalie Portman e Charles Melton no tapete vermelho de "Segredos de um Escândalos", no Festival de Cannes - Yara Nardi/Reuters

O longa também pode ser lido como uma crítica à Hollywood insaciável por filmes biográficos e true crimes. Nem por isso "Segredos de um Escândalo" deixa de fazer parte dessa engrenagem. A história, tirada a parte da atriz que estuda sua personagem, é inspirada no caso real de Mary Kay Letourneau, uma professora presa por pedofilia por se envolver com seu aluno, Vili Fualaau, nos anos 1990.

Ele chegou a procurar a imprensa para dizer que se sentia "ofendido com o projeto e a falta de respeito". Haynes tinha certeza que isso aconteceria, mas por mais que quisesse ter falado com o rapaz, foi barrado pelos advogados da produtora.

"Mas é importante destacar que o filme não é a história deles, os personagens não são eles. Só queríamos o mesmo contexto cultural e esse clima de tabloide."

Segredos de um Escândalo

  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Julianne Moore, Natalie Portman e Charles Melton
  • Produção EUA, 2023
  • Direção Todd Haynes
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