No samba ninguém cancela ninguém, diz Fabiana Cozza, com inéditas de Nei Lopes

Artista lança disco 'Urucungo', que tem como sua espinha dorsal canções românticas que também discutem o movimento negro

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Rio de Janeiro

Logo que seu disco com canções inéditas de Nei Lopes ficou pronto, Fabiana Cozza repetiu o ritual já feito em trabalhos anteriores. Mandou o trabalho para o amigo e escritor Marcelino Freire, esperando que ele sugerisse um título.

"Quando ele ouviu, disse que o nome do disco era ‘Urucungo’, o nome de uma das canções", diz a cantora. "Quando expliquei a ele que urucungo é um dos nomes do berimbau, ele respondeu ‘é isso, esse disco é um chamamento, uma convocação’. Nada como um poeta."

A cantora Fabiana Cozza, que lança 'Urucungo'
A cantora Fabiana Cozza, que lança 'Urucungo' - Marcos Hermes/Divulgação

A ideia de "convocação" atrelada a um disco de samba que tem como espinha dorsal canções românticas de Nei Lopes, segundo Cozza, pode parecer imprecisa. Há a presença de algumas faixas que justificariam esse viés mais marcadamente político.

Uma delas é a própria "Urucungo", parceria de Lopes com Marcelo Menezes, um jongo que aponta para raízes da tradição negra em solo brasileiro —e para além dele, no solo africano.

Outra é "Dia de Glória", da histórica parceria de Lopes com Wilson Moreira. Ela abre o disco num dueto de Cozza com Leci Brandão. A letra imagina um futuro, sintetizado no título, no qual "negro não vai ser rei só no Carnaval".

"É uma utopia que vem sendo colocada na rua pelos movimentos negros há tempos, mas que na letra usa o Carnaval como metáfora. A utopia do ‘Carnaval real’, como diz um dos versos", afirma Cozza.

A presença de Brandão nesse contexto incorpora também o que a cantora mangueirense simboliza. "Para conquistarmos nossos direitos precisamos trazer quem já está lutando há muito mais tempo", diz ela, que fez questão de cantar no tom de Brandão. "Porque ali é uma Nanã, uma velha senhora dizendo calmamente, com toda a educação, como é que tem que ser feito."

O chamamento que Marcelino Freire identificou no álbum vai além dessas canções. A desilusão amorosa aparece em "Senhora do Mundo", outra música de Wilson Moreira e Nei Lopes, numa oração a Iemanjá, introduzida pelo barulho da água e dos tambores.

Outras canções que falam de amor, como "Ré Sol Si Ré", também da dupla de compositores, ou "Já Não Manda em Mim" —de Ivan Lins, Vitor Martins e Lopes— ou "Ofertório", parceria com Francis Hime, trazem na letra, na melodia e nos arranjos a sabedoria profunda, gingante, sensível e maliciosa da tradição do samba. Sabedoria que ecoa como a convocação de um berimbau.

Na visão de Fabiana Cozza, Lopes encarna esse chamamento em sua produção como compositor, romancista, poeta, dicionarista, enfim, de pensador único, que trafega com desenvoltura nas quadras de escola de samba e na academia.

"Vejo muita gente hoje se intitulando multiartista. Mas esse conceito se esvazia frente a Nei Lopes, frente à profundidade de sua construção. É preciso de tempo para ser um Nei Lopes", diz a cantora. "Se você pensar na história social da música no século passado, ela era sempre contada por um viés majoritariamente branco. Nei vem sendo desbravador da diáspora negra e de como ela se deu no Brasil."

A cantora chama a atenção para o que define como "força civilizatória do samba". "Quando eu, como cantora popular, me deparo com compositores como Nei e Dona Ivone Lara, penso 'eu preciso me munir disso aqui'. Porque me vejo nesse país, esse foi o único país possível para mim, para o meu pai. O país de Nei Lopes, Wilson Moreira, Dona Ivone, Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra, Carmen Costa, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Djavan. Como Pixinguinha não é matéria das escolas?"

"Urucungo" traz um painel diversificado de parceiros de Lopes. Além dos já lembrados, estão lá os compositores Fátima Guedes, Guinga, Dauro do Salgueiro, Reginaldo Bessa e Everson Pessoa. Guinga participa do disco também com voz e violão na sua "Jurutaí". Estão também entre os convidados as cantoras Leci Brandão e Ilessi, o parceiro Francis Hime e o violonista João Camarero, além do próprio Lopes.

Fabiana Cozza louva a todos, mas faz uma menção especial a Ilessi, convidada em "Alquimias". "É assustador o que ela canta. Pedi um improviso a ela, que cantou mostrando uma compreensão total do que Dona Ivone fez. Eu convivi com Dona Ivone, conheço sua obra, mas não sei fazer aquilo".

O cavaquinista e bandolinista Henrique Araújo dirige o disco, além de assinar a produção musical junto ao percussionista Douglas Alonso. Juntos, eles e Cozza definiram a linha base da sonoridade do disco, que conjuga classe e pé no chão.

"A única orientação que dei foi ‘vamos fazer um disco de samba como ele é, Nei Lopes é o que é'. Eles são batuqueiros da Barra Funda, gente de roda. Aí depois pensamos no tratamento para além da batucada, que já estava garantida", diz. Estão lá músicos como a baixista Vanessa Ferreira e o violonista de sete cordas Gian Correa.

Cozza pensa "Urucungo" também à luz da polêmica que envolveu seu nome há cinco anos. Na ocasião, apontaram que ela era clara demais para viver Dona Ivone num musical, o que a levou a renunciar o papel. "No samba ninguém quer cancelar ninguém. Naquele momento, o samba me acolheu. Só voltei à vida e ao meu corpo porque a turma do samba me chamou", lembra a cantora.

Ela também menciona a ascensão da direita no Brasil nos últimos anos. "A ideia de fazer um disco sobre Nei Lopes representava poder respirar num tempo que estava irrespirável, poder cantar o amor numa época em que não pensávamos mais no amor." Cozza prefere porém, responder a pergunta inversa. "Qual o sentido de não fazer um disco como esse? Nei é um ganga, um feiticeiro, um mestre, um archote na escuridão."

Urucungo

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