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Artista recria figuras divinas como negros e prepara livro sobre sua jornada espiritual

Mark Doox vai lançar 'The N-Word of God', sobre a trajetória artística que desenvolveu ao longo das últimas três décadas

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Robert Ito
The New York Times

Quando Mark Doox entrou em um mosteiro ortodoxo oriental no Texas em 1987, ele pensou que poderia ter um chamado como monge. Um ano depois, percebeu que não. Mas ele encontrou algo além na capela do mosteiro: imagens de Jesus Cristo e da Virgem Maria pintadas no estilo bizantino, seus rostos serenos emoldurados por grandes halos dourados. "Foi quase como uma visão física", ele disse.

Doox decidiu naquele momento se tornar um iconógrafo. Mas, como um homem negro que cresceu nos anos 1960, Doox lutou contra o racismo que experimentou na sociedade e na igreja —e com a perspectiva de criar ícones de um Jesus branco.

Mark Doox em seu ateliê
Mark Doox em seu ateliê - Lauren DeCicca/The New York Times

"Pensei, não seria maravilhoso poder expressar essa espiritualidade, mas lidando com os dilemas existenciais do que significa ser negro na América?", questionou.

Depois de sair do mosteiro, Doox prosseguiu e criou ícones para duas igrejas singulares em São Francisco: a Igreja de São João Coltrane, cujo santo padroeiro é a lenda do jazz, e a vizinha Igreja Episcopal de São Gregório de Nissa, cuja coleção de santos inclui 90 pessoas e quatro bestas, todas dançando juntas.

Mark Doox folheia sua graphic novel 'The N-Word of God', em seu ateliê, nos Estados Unidos
Mark Doox folheia sua graphic novel 'The N-Word of God', em seu ateliê, nos Estados Unidos - Lauren DeCicca/The New York Times

As comissões de igreja de Doox tendem para o reverencial, frequentemente retratando pessoas negras como figuras sagradas, ou figuras sagradas como pessoas negras. Enquanto criava essas obras sagradas para os outros, Doox estava elaborando seu próprio conto absurdo que levou a um novo livro de arte ilustrado, "The N-Word of God", ou a palavra N de Deus, em tradução.

O opus de 366 páginas, que a Fantagraphics publicará em 27 de fevereiro, gira em torno de um personagem chamado São Sambo, uma figura de blackface com cartola e correntes, o rosto coberto por um sorriso exagerado contornado de branco que remonta aos dias do "minstrelsy" —subgênero do teatro derivado dos shows de menestrel. Nele, Sambo se transforma de um objeto de zombaria em um verdadeiro salvador de seu povo.

Essa história —que inclui pinturas do traseiro de Deus (referido como "o Divino Traseiro Branco de Deus"), a Virgem Maria como Tia Jemima e a Madonna e a Criança em blackface— soa como um soco provocativo no queixo.

"Mark está caricaturando essa ideia de 'minstrelsy' que foi imposta aos negros, e até adotada por eles, juntamente com a ideia do Cristo branco", disse W. Gabriel Selassie, professor de Estudos Africanos na Universidade Estadual da Califórnia, em Northridge.

"The N-Word of God" é o primeiro livro do iconógrafo e representa a culminação de uma jornada espiritual de mais de três décadas, disse Doox, de 65 anos, em entrevista. É "a realização da visão original que tive na capela ortodoxa do mosteiro", ele disse.

Doox, o mais novo de três irmãos, nasceu e cresceu em Columbus, Ohio. "Nós éramos extremamente pobres", disse. Seu pai tinha um emprego estável em uma companhia elétrica; sua mãe trabalhava como empregada doméstica.

Quando um professor de escola primária elogiou a leitura de Doox em um boletim, sua mãe ficou radiante, ele contou, já que ela mesma era analfabeta. Ele se tornou um leitor fervoroso de quadrinhos (Marvel, não DC) e ficção (Kurt Vonnegut era um favorito) e se juntou às equipes de xadrez e tênis de sua escola secundária. "Eu era um nerd", disse. "Mas era um nerd que poderia possivelmente te vencer."

Depois do ensino médio, Doox se matriculou no Columbus College of Art & Design. Enquanto estava lá, uma mulher o convidou para ir à igreja dela. Ela era muito bonita, ele contou, então ele foi. Logo, Doox encontrou Jesus, "esse ser místico de amor", disse, e abandonou a escola de arte para sempre.

"Saí em uma busca", afirma, descrevendo uma busca espiritual contínua, com paradas no Hinduísmo e no movimento Hare Krishna, para capturar aquela sensação de amor abrangente que ele havia experimentado pela primeira vez na escola de arte.

Com US$ 12 no bolso (ou R$ 60), Doox foi para a Califórnia, chegando por fim a São Francisco, onde se viu morando nas ruas e ajudando em uma cozinha comunitária. O pastor que administrava o local achou que Doox poderia ter um chamado mais elevado do que servir sopa, o que levou Doox ao mosteiro no Texas, onde aprendeu a esculpir imagens de santos na superfície de ovos de ganso.

Quando voltou a São Francisco, Doox, com um ovo na mão, fez uma visita à Igreja de São João Coltrane. Por destino, o pastor de lá estava procurando alguém para pintar ícones do saxofonista.

"Um domingo, esse jovem aparece com um ovo de ganso com um ícone nele", disse o Arcebispo Franzo King, co-fundador da igreja. "E eu disse, 'Meu irmão. Estávamos esperando por você.'"

Ele pintava em um galpão de armazenamento sem uso nos terrenos do que mais tarde se tornaria a Igreja de São Gregório de Nissa. Donald Schell, co-fundador de São Gregório, permitiu que Doox trabalhasse lá quando o artista não estava voluntariando na cozinha comunitária.

Doox guardava suas tintas e outros suprimentos no espaço de armazenamento —e, Schell percebeu, também uma placa quente e uma cama rústica "Houve um momento em que ficou claro que Mark estava morando no galpão", ele disse.

Em 1998, uma vez que St. Gregory's foi concluída, Schell abordou Doox sobre seu plano de preenchê-la com ícones de santos dançantes. "Mark disse, e cito, 'Acredito que tenho uma unção para fazer esse trabalho'", disse Schell.

De lá até 2008, Doox pintou retratos maiores que a vida de "santos" amados que incluíam César Chávez, Sojourner Truth e Anne Frank; suas figuras dançantes formam um círculo ao redor da rotunda da igreja.

Nas vezes em que a igreja interrompeu o trabalho para arrecadar fundos para sua próxima fase, Doox entregava peças de automóveis para várias empresas e trabalhava no que por fim se tornaria "The N-Word of God".

Em 2009, Doox conheceu Kerry James Marshall, o aclamado pintor e escultor, em uma palestra que Marshall estava apresentando no Museu de Arte Moderna de São Francisco. O encontro resultou em um mentorado de quatro meses, que Doox credita por ajudá-lo a desenvolver a abordagem visual que ele chama de "Biz-Dada", uma mistura de imagens bizantinas com os elementos satíricos do Dadaísmo.

Quanto a "The N-Word of God", o livro é tanto um trabalho de amor quanto uma coleção de maiores sucessos do trabalho de Doox. Mesmo assim, seus temas e imagens provocativos desafiaram amigos e aliados.

"O que está acontecendo aqui? É apenas para ofender?" Schell se perguntou. "Qual é a energia dolorosa, lutadora, zangada, reveladora que faz um pintor de ícones querer pintar o traseiro de Deus?".

Doox reconhece que seu trabalho pode ser difícil de aceitar. Ver pessoas negras como "seres humanos é devastador para a mente americana", disse. "Porque então você tem que dizer, 'O que fizemos? Como tratamos você?' —e não vi muitas pessoas que queiram falar sobre isso."

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