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Artes Cênicas

'Contado pela Minha Mãe' leva simplicidade exasperante à MITsp

Palcos despidos do espetáculo do libanês Ali Chahrour recusam o artificialismo e intrigam pela força ao mobilizar o público

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Maria Eugênia de Menezes

Contado pela Minha Mãe

Chega a ser exasperante a simplicidade radical do espetáculo "Contado pela Minha Mãe". O cenário se resume a um palco praticamente nu, cadeiras pretas e algumas pessoas, vestindo roupas comuns, que ocupam um tablado central, também negro.

Essa aparente limpeza da cena, que se despe de qualquer artifício que possa soar supérfluo, é o primeiro elemento que salta aos olhos do espectador da peça, encenada no Sesc Vila Mariana, e é um dos destaques da nona edição da MITsp, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Cena da peça 'Contado pela Minha Mãe', da MITsp
Cena da peça 'Contado pela Minha Mãe', da MITsp - Divulgação

Não que palcos despidos destoem do que se vê no teatro contemporâneo. Ao contrário, a recusa ao artificialismo está na ordem do dia e cenários há muito deixaram de ser pano de fundo ou apêndice decorativo para as ações.

Mas a criação do libanês Ali Chahrour –mesmo que perfeitamente ancorada em seu tempo e de acordo com as produções de seus pares– surpreende e intriga pela força do que consegue mobilizar. Como é possível fazer tanto com tão pouco?

As cenas que o coreógrafo e dançarino nascido em Beirute desenha são impactantes. Uma atípica e exitosa combinação de canções, reminiscências, tradições e performance. Apresentada em 2020 no Festival de Avignon –um dos mais importantes eventos cênicos do mundo–, a obra faz parte de uma trilogia do artista sobre o amor.

Para criar, Chahrour se ampara em dramas próximos. Primeiro, conta a história de sua tia, Fatmeh, que passou anos procurando pelo filho desaparecido, Hassan, recusando-se a aceitar sua perda enquanto não lhe trouxessem um corpo. Depois, também traz à cena a própria prima, Leila Chahrour, cujo filho quer partir para se tornar um mártir. Do emaranhado de conflitos que atravessa o Líbano atual, surgem mulheres comuns e a singularidade de seus afetos.

Esse enraizamento na subjetividade dos indivíduos para mirar a política já desponta como uma tônica da curadoria desta edição da MITsp. Para além da declarada intenção de buscar títulos do Hemisfério Sul, é possível perceber na grade uma consistência de posicionamento estético.

Caminhos semelhantes –que partem da autoficção em direção ao coletivo e ao histórico– pautam criações como a argentina "Wayqeycuna", e as sul-coreanas "História do Teatro Ocidental Coreano" e "Cuckoo".

O som contribui consideravelmente para o resultado alcançado por "Contado pela Minha Mãe". Executada ao vivo pelo duo Two or The Dragon e acompanhada pela voz da atriz síria Hala Omran, a trilha combina sonoridades que associamos imediatamente à cultura árabe, tais como a ênfase no canto e no ritmo, com ruídos que causam estranheza, barulhos de cidade grande e de guerras. É como se pudéssemos ouvir como a morte vai arruinando o espírito de um povo que gostava de estar junto e festejar.

Pelas canções ficamos conhecendo os dramas das mães; pelos movimentos que os intérpretes executam no palco somos arrancados da dimensão dramática e lançados para o trágico.

Todos querem convencer Fatmeh que seu filho Hassan foi morto na Síria. Entregam-lhe os pertences do rapaz –um celular e um suéter. Organizam um funeral. Mas ela se recusa a enterrar uma peça de roupa no lugar de um corpo. Afasta com um movimento de cabeça aqueles que querem prestar condolências. Esse gesto brusco embasa a coreografia e atravessa os corpos. É um movimento que vai e volta, é uma lembrança da insubmissão.

Antígona paira como um fantasma. Na tragédia grega de Sófocles, ela é a mulher que se recusa a aceitar as ordens do poder estabelecido e insiste em dar uma sepultura ao corpo do irmão, morto em batalha e proibido de ser enterrado.

Para o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, autor do festejado "A Sociedade do Cansaço", vivemos em uma época pós-narrativa. Na contemporaneidade, perdemos a capacidade de criar e apreciar narrativas significativas, constantemente inundados pelos excessos e emoções fabricadas pelo storytelling, vidrados na troca acelerada de informações dos smartphones.

Diante de um mundo em que as histórias são construídas para vender e fazer circular mercadorias, onde tudo se tornou arbitrário e fugaz, Ali Chahrour é cirúrgico. Na costura arguta que faz de elementos antagônicos –vida e morte, particular e coletivo, luto e alegria–, cada detalhe está carregado de intenção e propósito.

Nada em sua encenação pode soar excedente. E é dessa contenção extrema que alguma coisa explode.

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