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Livros

Leonard Cohen revela sua faceta de romancista em livro alucinógeno

'Belos Fracassados' já vendeu milhões, um feito incrível para uma escrita tão libertária, turbinada por drogas e sol escaldante

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Cadão Volpato

Escritor e músico, é autor de 'À Sombra dos Viadutos em Flor' e 'Abaixo a Vida Dura'

Belos Fracassados

  • Preço R$ 79,90 (280 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Leonard Cohen
  • Editora Todavia
  • Tradução Daniel de Mesquita Benevides

Antes de se tornar um dos grandes artistas da música do século 20, Leonard Cohen foi uma estrela literária em seu país, o Canadá.

Nascido em Montreal e exposto aos movimentos que conduzem o espírito da província de Québec (separatismo, identidade própria, direitos dos povos originários), Cohen já era uma figura meio à margem. De família de judeus ortodoxos, ele falava e escrevia em inglês num ambiente católico e francófono.

homem mais velho com chapéu e terno cinza olha sério apoiado em piano
O escritor e compositor Leonard Cohen, morto em 2016 - Divulgação

Ainda nos anos 1950, antes de se mover para a música na década seguinte, Cohen foi revelado como poeta. E na poesia ele já entrou fazendo um certo barulho, influenciado por Walt Whitman e Federico García Lorca.

A poesia e a prosa o acompanhariam até a ilha grega de Hydra, onde comprou uma casa e conheceu Marianne Ilhen, uma de suas grandes musas. Lá ele escreveria, em duas ocasiões de oito meses cada, um romance de pura vanguarda chamado "Belos Fracassados", publicado agora no Brasil.

Foi feito à base de anfetaminas, LSD, músicas de Ray Charles e muito sol na cabeça, o que o levaria ao esgotamento físico e mental.

"Belos Fracassados", lançado em 1966 —ou seja, à beira da guinada musical com o primeiro disco, "Songs of Leonard Cohen", de 1967—, é um livro que reflete todo a aventura e o caos da juventude dos anos 1960. Deve ser lido com paciência, a mesma que se costumava devotar a obras mais difíceis como as de James Joyce, com o qual, aliás, Cohen seria comparado.

O enredo se move em pelo menos quatro direções diferentes, partindo de seus personagens principais. Há uma santa do século 17, Catherine Tekakwitha, de origem indígena (que havia sido apenas beatificada no tempo da escrita do romance). Há também um narrador anglófono e folclorista, sua mulher, Edith, e F., uma espécie de pai espiritual sarcástico.

A linguagem que os representa é plana, em linha reta, mas a história é complexa, carregada de sexo, drogas, viagens transcendentais e influências diretas da cultura pop, como os quadrinhos e o cinema.

O romance é o resultado dessa viagem um tanto alucinógena, cravada na metade de uma década maluca, e profundamente liberada por ela, pelas ideias que passavam pela cabeça das pessoas jovens do seu tempo.

Não é nada fácil traduzir um livro como esse, que transita pela ironia e brinca com a língua inglesa. O trabalho de Daniel de Mesquita Benevides, colaborador da Folha, é notável. Ele atualiza, com humor, a maluquice do romancista e mostra que entende o escritor e o músico num posfácio esclarecedor.

Ele informa, por exemplo, que a figura mística de Catherine Tekakwitha se tornou uma obsessão de Cohen desde que fora apresentado a ela por uma amiga. Carregava santinhos na carteira e colava seus retratos nas paredes do quarto.

Leonard Cohen sempre seria um rebelde, uma peça descalibrada não só na literatura, mas também no meio da música, no qual alcançaria um sucesso maior. "Belos Fracassados" já vendeu milhões, graças, em boa parte, à fama do músico. Mas é incrível que isso tenha acontecido com uma obra de características tão libertárias, escrita sob o sol escaldante de uma ilha grega e turbinada com drogas.

É uma contradição que o romance tenha entrado para o cânone da literatura de língua inglesa, quanto mais por ter sido escrito por um judeu num ambiente majoritariamente católico e francófono.

Talvez tudo isso tenha acontecido porque o livro aprisiona o espírito do seu tempo. As aspirações com as quais Cohen mexeu ainda continuam na pauta do Québec, e as coisas ainda não mudaram tanto assim no Canadá, em que separatistas e povos originários ainda são notas dissonantes em uma sociedade aparentemente pacífica.

Foi o último livro de fôlego de Cohen e seu último romance. Em 1967, percebendo a dureza que seria uma carreira de escritor e notando a sofisticação das canções de Bob Dylan, ele se virou na direção da música. Mas o barulho de "Belos Fracassados" permaneceu na literatura: a aventura vanguardista do livro já havia encontrado o seu lugar.

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