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Filme 'Uma Baía' mostra que continua bela e banguela a Guanabara

Documentário de Murilo Salles acompanha o cotidiano das comunidades que vivem ao redor do mítico ponto do Rio

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Uma Baía

  • Onde Nos cinemas
  • Classificação Livre
  • Produção Brasil, 2021
  • Direção Murilo Salles

"O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara/ O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara/ Pareceu-lhe uma boca banguela."

Em 1988, Caetano Veloso flagrou, na canção "O Estrangeiro", a existência ambígua da poça de água cinzenta que desvirgina o Rio de Janeiro. Penetrando nela, os europeus alcançaram terra à vista e deixaram seus rastros ali, maculando a natureza intocada. Assim, se inaugurou uma metrópole cindida.

Cena do filme 'Uma Baía', de Murilo Salles - Divulgação

É permanente a tensão entre a paisagem estonteante, à que Gauguin se referiu, e a matéria impermanente que se acumula às suas margens. O lodo carrega o lixo —latas, pneus, barracos. A ponte Rio-Niterói precisa balançar para se manter de pé. A dualidade diluída em água está em cartaz em forma de filme.

"Uma Baía", de Murilo Salles, que ganhou há três anos os prêmios de melhor direção e melhor montagem no Festival do Rio, examina a boca banguela. O documentário de quase duas horas prefere o silêncio para atingir o real. A câmera é o olho do homem.

Tomadas em close se unem a planos abertos —o detalhe de um caranguejo rompendo o saco de um catador contra o timoneiro singrando o barco em pleno pôr do sol. O close escrutina as coisas, enquanto o plano aberto contempla as pessoas que rompem a realidade.

Não há narrador, tampouco entrevistas. Só a montagem fala, num jogo de correspondências entre a linguagem empregada e a baía. Salles acompanha uma dezena de anônimos. As pessoas não falam para a câmera, nem sabemos como elas se chamam. São, no entanto, personagens que se sucedem. Uma mulher negra tem seu cabelo trançado, antes de ir ao trabalho, onde descama peixes.

"Uma Baía" mostra que a vida, às margens do acidente geográfico, não está apenas nos municípios vizinhos. O filme se interessa pelo cotidiano escondido na imensidão da paisagem. Os estivadores trabalham em armazéns, vendo o noticiário. Na TV, o ex-presidente Michel Temer, do MDB, anuncia o seu "não renunciarei", e o espectador pensa a relação entre Brasília e a baía.

Em especial, constata que essa gente está à deriva. Só mesmo crendo em Deus, como o barbeiro que evangeliza a sua comunidade, para vislumbrar uma outra vida. Mesmo quem está alheio à transformação religiosa do país, concebe a baía como um lugar apocalíptico. Na ponte, o homem, estrangeiro em seu próprio território, se fecha no automóvel como quem se protege da boca que pode o engolir. É, afinal, terrível se imaginar nadando no nada —ou à deriva como as pessoas que moram nas redondezas.

A baía é, assim, apocalíptica —como a geografia se acidentou para dar origem a tanta beleza?— e mítica, porque remonta à invenção de uma cidade, concretizada nos edifícios históricos do centro do Rio. Quanto a Salles, o cineasta se notabilizou pelo trabalho na fotografia, desde "Tati, a Garota", filme de Bruno Barreto, lançado em 1972. Na década seguinte, arrematou um Kikito, em Gramado, por "Eu te Amo", de Arnaldo Jabor. "Nunca Fomos Tão Felizes", de 1984, foi o seu primeiro filme como diretor, pelo qual foi premiado em Locarno.

Em "Uma Baía", sua depuração técnica está, sobretudo, no som. Ausentes, as falas das pessoas se tornam ecos, fragmentos de conversa, em que a dureza cotidiana se anuncia. Ouvimos o estalar enferrujado do casco dos navios, ferro e aço contra a água. A estratificação das classes dá lugar à plasticidade do lodo, jorro sempre em movimento. Quase cem toneladas de lixo são despejadas, todos os dias, na baía, 30 anos depois da Eco-92, sediada no Rio de Janeiro.

A boca regurgita o cemitério marinho, aquele do poema do francês Paul Valéry. No matadouro de almas, os corpos dos suicidas do vão central se unem aos operários mortos na construção da ponte e aos 51 navios fantasmas que ali flutuam.

Em sua simplicidade temática e formal, Salles não diz nada sobre a eterna promessa de despoluição da baía. Em última instância, essa promessa se estende à utopia de uma cidade, que aspira à vida nova, num arrebatamento.

Só que, em "Uma Baía", o mito do paraíso tropical se dilui em melancolia, porque continua bela e banguela a Guanabara.

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