Descrição de chapéu A Vida na Ucrânia

Ópera da Ucrânia resiste com música ao som dos alarmes de ataque aéreo da Rússia

Teatro no coração de Odessa, um dos polos culturais do país, aposta na arte para sobreviver à rotina de incertezas

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Interior da Ópera de Odessa, cidade que é um dos polos culturais da Ucrânia

Interior da Ópera de Odessa, cidade que é um dos polos culturais da Ucrânia Francisco Proner/Folhapress

Odessa (Ucrânia)

No palco, Dom Quixote mirava orgulhoso um casal apaixonado rodopiar em passos de dança. Já haviam se passado 25 minutos do início do balé, e o cavaleiro da triste figura ainda nem saíra em sua aventura, quando o alarme soou no ar anunciando o ataque aéreo.

Não fazia parte da peça. A performance acontecia na Ópera de Odessa, no sul da Ucrânia, em meio à guerra que o país trava com a Rússia. Se a cidade fica longe da linha de frente, os alertas de bombardeio são diários.

Isso não quer dizer que todos os dias há de fato um ataque contra Odessa, um dos polos culturais da terra de Volodimir Zelenski —o último aconteceu na quarta-feira, sem vítimas. Mas os alertas servem de precaução, pondo a vida sob tensão constante —a qualquer ameaça, a orientação é se esconder num abrigo.

As luzes se acenderam de supetão, os dançarinos se interromperam. Em poucos segundos, as cortinas desceram e lanterninhas —quase todas mulheres mais velhas— começaram a dirigir a plateia de cerca de 300 pessoas para o subsolo do prédio.

Segundo os funcionários, cerca de metade das performances sofrem a mesma interrupção que a reportagem testemunhou no sábado à tarde.

Quando o período de alarme dura menos de uma hora, caso daquele dia, a apresentação continua normalmente depois. Quando é mais demorado, o público pode usar o ingresso para comparecer à sessão de outro dia.

Ao sinal de emergência, a plateia é conduzida a uma entrada pela lateral do palco e desce quatro lances de escada, até chegar a uma rede de corredores subterrâneos com pé direito alto, mas temperaturas baixas, que foi adaptada do antigo sistema de ventilação do local. Ali há algumas dezenas de cadeiras, galões de água e um Wi-Fi capenga.

O abrigo comporta até 2.000 pessoas, segundo a organização do lugar, mais que a capacidade de 1.500 assentos do teatro. Isso porque deve incorporar também a equipe de bastidores, os funcionários da bilheteria e, além disso, pode ser usado por transeuntes que estejam passando por perto na hora do susto.

Ali, afinal, é uma região turística. O Teatro Nacional de Ópera e Balé de Odessa, decorado em estilo rococó e adornado com espelhos de bronze e lustres dourados, é um coração daquela metrópole. Em atividade desde 1810, a ópera só parou durante um incêndio no século 19, uma reforma de 11 anos na virada deste século e poucos meses em 2022.

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Atores e dançarinos vestidos como personagens da história de Dom Quixote se apresentam na ópera de Odessa, na Ucrânia - Francisco Proner/Folhapress

A suspensão após a invasão russa foi bem breve. Menos de dois meses depois do começo da guerra, com a investida de Vladimir Putin sobre o flanco oriental da ex-nação soviética, o espaço resolveu retomar os seus ensaios.

A volta foi com uma montagem que incluía trechos de "Romeu e Julieta" e uma peça do compositor ucraniano Kostiantin Dankevich, em junho daquele mesmo ano. Antes, houve uma apresentação emocionada do hino nacional em meio a uma praça ainda circundada por pilhas de sacos de areia.

"Não só as operações militares são importantes numa guerra. Corações e mentes também são", diz Tamara Forsiuk, de 30 anos, diretora no teatro há cinco. "É mais fácil sobreviver a conflitos com a arte. Quando você vê um ator como um herói, pode se identificar com ele."

Desde então é toda semana, infalível, ao menos de sexta a domingo. A escolha de repertório varia. Se há performances relacionadas a tempos de guerra e óperas clássicas de autores europeus, com privilégio confesso aos ucranianos, "às vezes as pessoas só querem ver uma comédia", afirma Forsiuk.

Com a montagem de peças infantis, a ópera também virou acolhimento para famílias com crianças em busca de distração da tragédia, que chegou a vitimar um dançarino da trupe e um engenheiro de bastidor, ambos recrutados para lutar no front.

Um tema ainda mal resolvido é a apresentação de compositores russos, que ainda não aconteceu desde a reabertura. Se o teatro se orgulha nos seus panfletos de propaganda de ter recebido visitas de Tchaikóvski no século 19, há pouca propensão a apresentar um autor tão ligado ao imaginário russo.

Outro ponto delicado é o poeta Alexandre Púchkin, pai da literatura russa que morou em Odessa, onde se ostenta um monumento e uma rua em sua homenagem. Houve um movimento para mudar o nome da via depois que a Rússia passou a ser vista como país de "ogros colonizadores".

Esse xingamento, aliás, é comum entre ucranianos. A reportagem ouviu diversas vezes os militares russos serem definidos como "orcs" pelos locais —inclusive de um historiador que ilustrou com uma foto no celular dos vilões asquerosos da franquia "O Senhor dos Anéis".

Guerras, afinal, também disputam imaginários, e o cenário mais conhecido de Odessa se celebrizou justamente assim: a hoje chamada Escadaria de Potemkin se tornou mundialmente famosa como estrela do filme de Sergei Eisenstein, lançado em 1925.

Numa cena seminal, os soldados do czar assassinam dezenas de pessoas que descem correndo os 192 degraus da escada para celebrar os revolucionários do Encouraçado Potemkin, num episódio que entrou para a história do cinema, com tintas carregadas de idealismo bolchevique.

A ofensiva das forças russas hoje tem alvos e motivos distintos —agora, avança sobre as fontes de energia da Ucrânia, tentando minar fontes básicas de acesso a água e eletricidade.

No caso da Ópera de Odessa, a investida não deve ter muito efeito, já que os músicos contam com um gerador de energia próprio, que não deu defeito desde o início da guerra. E assim Dom Quixote pode continuar enfrentando seus moinhos de vento.

O jornalista viajou a convite do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido

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