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Entender personagem é como examinar paciente, diz médico que criou best-seller

Em 'O Pacto da Água', Abraham Verghese conta saga de família amaldiçoada e afirma que história das doenças é a das pessoas

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Buenos Aires

Quando Arthur Conan Doyle conheceu o doutor Joseph Bell, ficou embasbacado.

O médico escocês, ao apenas olhar e conversar um pouco com seus pacientes, poderia não apenas conhecer sua personalidade, como também que tipo de viagem havia feito para chegar até seu consultório e como. Ainda fazia um diagnóstico sobre sua condição com grande precisão, sem ter de pedir uma série de exames —o que, aliás, seria quase impossível naqueles tempos.

Foi Bell quem deixou na mente engenhosa de Doyle a semente para que criasse seu mais famoso personagem: o detetive Sherlock Holmes.

Homem com as mãos nos bolsos de um casaco de couro
O médico e romancista Abraham Verghese - Jason Henry/Divulgação

Bell é também a referência de um escritor contemporâneo, Abraham Verghese, 68, cujo romance "O Pacto da Água", acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Médico nascido na Etiópia e formado na Índia, filho de pais indianos, é professor na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos e, entre atendimentos médicos, aulas e tempo livre, se dedica à literatura.

"O Pacto da Água" tomou-lhe 14 anos para escrever e se trata de uma saga que atravessa gerações de uma família, e que entrelaça seus conhecimentos médicos aos de um cidadão do mundo.

Quando atende a reportagem da Folha, numa videoconferência feita dos Estados Unidos, Verghese mostra antes de tudo o painel em que desenhou os protagonistas, suas ramificações e seus destinos. "Isso foi mudando, esta deve ser a sétima ou oitava versão deste guia", diz, enquanto mostra o quadro com desenhos dos seus personagens e sua árvore genealógica.

"O que me aproximou da literatura foi esse lado humano, essa ideia de que, ao estudar o paciente, também estamos indo à essência daquela pessoa. Por isso, a medicina é tão rica. Ler um corpo é ler uma vida. Um médico que nem te olha e já passa vários pedidos de exame é como um escritor que não quer entender o que seus personagens sentem. Por isso, para mim é importante integrar as duas coisas", diz.

O romance se passa entre 1900 e 1977, em Kerala, no sul da Índia, e segue uma família que sofre uma espécie de tragédia cíclica; a cada três gerações, ao menos uma pessoa morre afogada. "Se você vai à Índia, se encontra com essa presença contínua da água e da relação íntima que todos têm com ela, ali se mergulha, tomam-se dois ou três banhos por dia, morre-se nela", diz Verghese.

As histórias que recheiam a saga têm uma referência, o caderno de notas de sua mãe, morta em 2016. "Minha mãe sempre foi uma grande contadora de histórias e professora. Ela nos contava de modo muito envolvente as histórias de cada membro da família quando éramos pequenos. Um dia, descobrimos que ela mantinha desde os cinco anos um caderno em que havia escrito a história de todos os familiares e de coisas que lhe passaram naquela época, com os olhos coloridos e exagerados de uma criança."

O manuscrito, lembra Verghese, tem desenhos, como os que ele tenta fazer antes de começar a escrever uma história, para ajudá-lo a imaginar os personagens. "Ainda aprendo muito como encaminhar uma história e como construir um personagem com esse documento deixado pela minha mãe", afirma.

Na obra, os afogamentos estão relacionados a uma determinada condição médica que faria com que certas pessoas fossem mais vulneráveis a se afogar do que a média. Essa condição teria sido desenvolvida pelos casamentos inter-comunitários. É algo não certificado do ponto de vista científico, mas no qual Verghese crê ver algo de verdade.

"É muito comum, na Índia, que as pessoas apenas se casem dentro de sua comunidade religiosa. Aí o que quis investigar é se patologias podem atravessar gerações por conta desse tipo de reprodução. Algo que seguramente não aconteceria no Brasil, porque entendo que seja muito mais comum que as pessoas de distintas religiões se casem entre si".

Para Verghese, a história das doenças e seus tratamentos são também sagas que devem ser contadas pela literatura. O escritor diz que essa lição ele aprendeu quando fazia seu treinamento médico em Boston, nos anos 1980, na época da explosão dos casos de Aids.

"Era frustrante ver como a doença aparecia e não dava tempo, nem havia recursos para estudá-la e salvar o paciente. Vi muita gente a quem atendi pessoalmente morrer. Demorou muito tempo para encontrar um tratamento eficaz. E hoje vemos doenças como a Covid-19 aparecerem e em menos de um ano temos uma vacina. A história do corpo e de suas enfermidades é também a história das pessoas."

A experiência com os tratamentos de pacientes com HIV é contada por Verghese no livro "Minha Terra", também publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Na ocasião do lançamento, o autor esteve na Bienal do Livro do Rio.

Quando começou a escrever, Verghese conta que acendeu uma vela para que Oprah Winfrey o escolhesse para sua lista de recomendações. Não conseguiu com o primeiro livro, mas sim com "O Pacto da Água". "Para mim foi muito importante, conheço gente que não é leitora nos Estados Unidos, mas que espera sua lista todo ano para ler os escolhidos", conta.

Entre outros reconhecimentos, Verghese também recebem a Medalha Nacional de Humanidades, entregue pelo presidente Barack Obama, em 2015.

O Pacto da Água

  • Preço R$ 99,90 (632 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Abraham Verghese
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Odorico Leal
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