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Paulo Alcoforado

Regulação do streaming deve assegurar políticas audiovisuais do Brasil

Desafio é aprovar um marco legal que enfrente os problemas reais desse setor no país

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Paulo Alcoforado

Diretor da Agência Nacional do Cinema (Ancine)

O audiovisual brasileiro é hoje um ambiente econômico assimétrico regulatória e tributariamente, caracterizado por tensões entre atividades econômicas de segmentos de mercado que se canibalizam.

O grande fator de desequilíbrio são os serviços de vídeo sob demanda, ou VoD, e streaming, que, gozando de grande relevância econômica e influência sobre a organização da economia, sociedade e Estado, figuram entre as atividades econômicas menos reguladas no país.

Fachada da sede da Ancine, a Agência Nacional de Cinema, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

Metade da receita publicitária migrou da televisão para as plataformas digitais pela grande capacidade dos provedores de VoD em acessar dados dos usuários e direcionar publicidade para cada indivíduo, o que contrasta com a quase absoluta ausência de informações sobre esses serviços.

O carregamento de canais em catálogo de VoD recebe enquadramento tributário favorável se comparado com seus concorrentes na TV paga, que perde assinantes e receitas. Fabricantes de dispositivos conectados à internet entraram no negócio do conteúdo, tornando mais difícil encontrar canais da radiodifusão nas smart TVs, e sobrepõem publicidade às imagens de canais lineares que licenciam para a sua primeira tela. A TV 3.0 promete criar interface poderosa entre a TV aberta e a internet, acenando para um serviço de VoD potencial em cada canal.

Essas tensões se dão em meio a dinâmicas de captura indiscriminada de dados pessoais e desorganização da estrutura de receitas dos negócios tradicionais e das relações trabalhistas.

E promovem a convivência entre a bem-vinda diversidade editorial com problemas de mesma natureza como a proliferação de notícias fraudulentas, publicidade enganosa ou de produtos ilícitos, discursos de ódio, agressão à infância e a vulneráveis, ataques ao Estado de Direito etc.

É nesse mercado de licenças sobre os conteúdos audiovisuais que se colocam os desafios de criação e circulação de propriedade intelectual brasileira e independente, de estímulo à transação de direitos autorais de cunho patrimonial, de combate à verticalização e concentração econômica, de defesa da concorrência, de geração de trabalho e desenvolvimento regional, de políticas afirmativas e de reparação histórica.

Mas sobretudo de migração para um modelo menos concentrador, de menor custo e maior ganho de escala, capaz de alimentar catálogos, a partir da integração com a produção independente.

Tramitam no Senado e na Câmara dois projetos de lei que disputam a regulação dos serviços de VoD, em meio a quatro consensos —a necessidade de regulação; a abrangência contemplando as modalidades de compra avulsa (T-VoD), por assinatura (S-VoD) e via oferta gratuita suportada por publicidade (A-VoD); a Ancine como órgão regulador; e uma nova hipótese de incidência da Condecine sobre a receita operacional bruta dos serviços.

Cabe ao senador Eduardo Gomes (PL-SE) e ao deputado federal André Figueiredo (PDT-CE), relatores dos substitutivos em tramitação, conduzirem esse processo sem permitir que a lei que regulará os serviços do VoD seja criada ao largo das conquistas históricas das políticas do audiovisual brasileiro.

Para tanto, são mais relevantes e merecedores de aperfeiçoamento no texto dos substitutivos aspectos regulatórios afetos à estrutura da lei, ao âmbito de abrangência, à organização jurídica e institucional e às atribuições da autoridade regulatória, além de melhor tratamento conferido à produção independente, especialmente quanto às regras de cotas e proeminência.

São ainda necessários aperfeiçoamentos relacionados a uma definição de produtora brasileira constituída sob as leis brasileiras, com sede e administração no país, e controle por brasileiros; à superação da posição marginal da produção independente nos substitutivos; à efetividade das cotas com dimensionamento capaz de estimular associações entre provedores e produtores independentes; à supressão do rol de deduções e isenções de modo a inverter a situação que hoje significaria arrecadação a menor do que a legislação em vigor permite; à supressão de financiamento público de obras proprietárias de provedores e outras despesas regulares.

Mas o centro de gravidade do debate tem se concentrado sobre a tributação e a aplicação dos recursos, ainda que se desconheça a receita operacional bruta dos serviços de VoD, informação essencial à discussão sobre o valor da alíquota e projeção dos investimentos.

A Lei deveria prestar homenagem à arquitetura institucional do audiovisual no estado brasileiro, que tem no Conselho Superior de Cinema o órgão responsável pela fixação das diretrizes e metas do audiovisual nacional e no Comitê Gestor do FSA, sob a presidência do titular do Ministério da Cultura, a responsabilidade pelo planejamento anual e modelagem das linhas de financiamento e suas regras de negócio.

Consome-se de tudo em vídeo, para além do entretenimento e informação, cada vez mais de forma não linear. Bem regular cada novo segmento implica ampliar o mercado de licenças sobre conteúdos audiovisuais.

Regular os serviços de VoD poderá trazer mais que os expressivos resultados obtidos com a regulação da TV paga, considerando o poder estruturante desses serviços em organizar o ambiente audiovisual no país.

Não se trata de reivindicar um modelo ideal, o que corresponderia a uma lei geral que harmonizasse marcos legais e reduzisse tensões entre os segmentos do audiovisual brasileiro.

Trata-se de assegurar conquistas das políticas audiovisuais constituídas por meio de um marco legal que enfrente os problemas reais do espaço audiovisual brasileiro, mire objetivos de desenvolvimento do país, suas empresas, profissionais e cidadãos, exija responsabilidade dos editores de conteúdo e seja contemporâneo dos debates regulatórios atuais.

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