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Filmes Itália

Festival na Itália mostra que não deveríamos restaurar qualquer filme

Il Cinema Ritrovato, dedicado à recuperação de obras antigas, teve como surpresa 'O Caminho do Diabo', de Anthony Mann

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Bolonha (Itália)

Depois de um começo desencontrado por conta de um problema com reservas perdidas, o festival Il Cinema Ritrovato começou a entrar na normalidade, com cinéfilos subindo e descendo a Via delle Lame, onde fica a Cinemateca de Bolonha, em busca de raridades, filmes reencontrados ou restaurados recentemente.

Cena do filme "O Caminho do Diabo", de Anthony Mann
Cena do filme "O Caminho do Diabo", de Anthony Mann - Divulgação

A primeira e talvez a maior surpresa foi "O Caminho do Diabo", um faroeste de 1950 de Anthony Mann. Eu pensava conhecer todo o faroeste do cineasta e não esperava nada de excepcional em mais um filme. Resolvi arriscar, no entanto, e fiz muito bem, porque foi uma das coisas mais deslumbrantes que vi nos últimos tempos.

O filme é uma pequena produção, apesar de feita pela grande Metro-Goldwyn-Mayer, e que parece ter passado despercebida de quase todo mundo, até pela circunstância política complicada que ele aborda, tão mais complicada quanto no momento de Guerra Fria. Trata-se da história de um indígena shoshone que luta na Guerra de Secessão e volta com uma medalha do Congresso e uma patente de sargento.

Ele logo ficará sabendo que essas belas terras dos indígenas shoshene são extremamente cobiçadas pelos brancos. E é então que começa o clássico conflito entre os dois grupos, mas vista por Mann de uma perspectiva completamente fora da habitual, com um vigor e uma vitalidade que nem mesmo os filmes de Delmer Davis, defensor dos indígenas, têm.

Mann faz planos sempre belíssimos, panorâmicas invencíveis em que ele era especialista, mas, sobretudo, produz um grande filme sobre a tragédia dos povos indígenas americanos, nativos condenados a deixar a sua terra para dar lugar ao homem branco —terra que para eles é o fundamento da existência— e serem mandados para reservas que eram invisíveis, uma espécie de condenação prévia.

Entre as raridades italianas, me impressionou muito "Escola de Herói", de Enrico Guazzoni, um filme de 1914, portanto de um momento em que os italianos, com suas grandes produções, davam duro nos americanos. E a gente entende por quê.

O filme, um melodrama sobre alguns soldados do exército napoleônico, tem uma movimentação extremamente dinâmica e é um momento belíssimo do cinema mudo. Bem ao contrário de "Quo Vadis", que, uma tentativa de combater as produções americanas que francamente não deu em nada. O filme é chato para caramba, não tem nada de interessante.

Outro filme importante é a comédia "E a Vida Continua", de George Stevens, de 1942, com Cary Grant e Jean Arto. Grant faz um cara condenado por engano que foge da cadeia e se refugia na casa da personagem de Arto. Ali eles vão tratar com o inquilino da moça, um grande professor de direito, mas que é puramente teórico e não quer se envolver com o caso.

É uma boa comédia, bem melhor do que aqueles últimos filmes dos anos 1950, grandes maquinários de Stevens, que não me impressionaram tanto. Ao contrário, esse filme tem leveza, agilidade e um belíssimo controle de tudo o que sucede.

"A Tortura do Medo" é um filme muito original, porque é a história de um voyeur e cineasta, que usa a sua câmera para flagrar mulheres e depois matá-las. Essa conjunção entre o cinema e o voyeurismo, que deu tão certo, por exemplo, em "Janela Indiscreta", de Alfred Hitchcock, aqui é levada à britânica, mas com competência, num filme que muitos dizem que é terrível e arruinou a carreira do Michael Powell. Pode ser, mas é um filme memorável sobre cinema, entre outras coisas.

Merecem um parágrafo especial dois filmes que foram apresentados por Wim Wenders, "Os Meninos de Tóquio", de Yasujiro Ozu, e "O Caminho do Diabo", de Anthony Mann.

"Meninos de Tóquio" é um belo filme, que fala da questão do crescer, de crianças que mudam de um lugar para outro, sofrem bullying na escola, que vão descobrir que o pai não é o cara poderoso que eles imaginavam.

Todas essas agonias do crescimento estão presentes, porém aquele não é ainda o grande Ozu que a gente vai conhecer entre o final dos anos 1940 e os 1960, quando ele morre. Então, é um belo filme mudo, embora para mim a observação de antigos críticos japoneses de que o grande Ozu era o mudo, e não o sonoro, é completamente equivocada.

Aliás, eu gostaria de saber um pouco sobre essa fama de Maurizio Stiller ser o maior cineasta do mundo em 1923.É quando ele faz o principal trabalho dele, "A Saga de Gösta Berling", que projeta Greta Garbo mundialmente. E aí ele é contratado pela Metro e, diz a lenda, Garbo entra como contrapeso do contrato. O que que acontece? Quando ele chega, o estúdio fica com Garbo e manda Stiller de volta para a Suécia sem ter filmado nenhum plano nos Estados Unidos.

Bom, eu devo dizer que a minha impressão de "Gösta Berling", restaurada agora, é a pior possível em relação à fama. Eu esperava um grande filme. Mas do meu ponto de vista, a possibilidade que um filme como esse apresenta, de a gente rever a questão dos restauros de filmes mudos, é significativa. Por quê? Porque os filmes mudos eram a casa da mãe Joana, todo mundo sabe disso.

Cada um chegava, cortava, tirava um pedaço, botava conforme o gosto da cidade, do projecionista, do dono do cinema, sabe-se lá de quem. De onde resultaram inúmeras versões, que hoje os pesquisadores saem atrás, baseados nos roteiros, sobretudo.

O que acontece? Acontece que esses restauros recentes são com frequência um tanto enfadonhos, um tanto longos. Você ganha muito, como em "Metropolis", de Fritz Lang, mas você também fica sempre em dúvida. Esses restauros que se baseiam no roteiro significam o quê? Porque o roteiro não quer dizer que o diretor quis filmar tudo, ou quis que tudo fosse exibido. Você arranca muita coisa na montagem.

Muita coisa que você projetou, que você filmou, não te interessa. Você percebe que ali perde ritmo, ou que era menos indispensável do que pensava.

O Japão vem esse ano representado por Kosaburo Yoshimura. Eu admito que não vi muita coisa dele, um filme apenas. Não achei nada impressionante, embora tivesse um roteiro de Kenji Mizoguchi, ou justamente por isso.

Na parte americana, Anatoly Litvak é um diretor honesto, mas não tem a dimensão de Ford, Hawks, Raoul Walsh, de alguns que trouxeram ao festival e que deixaram todo mundo de queixo caído pelos filmes desconhecidos.

Acho que o festival está pedindo alguma coisa como essa daqui. Então essa é a primeira parte, a coisa continua. A assinalar ainda, foi apresentado "Hot Water", um filme de Harold Lloyd, para falar do projeto da Cinemateca de Bolonha de fazer um restauro de seu trabalho, como foi feito com Chaplin e Buster Keaton. Melhor avisar logo que Lloyd está longe de ter a dimensão desses dois geniais.

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