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Carlos Adriano

Ozu filmou desespero humano com contenção sóbria de um haicai

Cineasta japonês, poeta da rotina, nasceu (há 120 anos) e morreu (há 60) em 12/12

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Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

[RESUMO] Um dos maiores nomes do cinema japonês, o diretor Yasujiro Ozu é considerado o "poeta da rotina", autor de "épica doméstica" constituída de filmes em tom menor. Em comedido arroubo, simbolizado por seu inconfundível estilo de câmera baixa e planos fixos, retratou tópicos cruciais da condição humana (desagregação familiar, morte, solidão). Nos 120 anos de seu nascimento e 60 de sua morte, cineasta brasileiro comenta o imenso legado do artista.

O cineasta japonês Yasujiro Ozu nasceu e morreu na mesma data: 12 de dezembro. Viveu de 1903 a 1963. Neste ano, portanto, completam-se 120 anos de seu nascimento e 60 anos de sua morte.

Tal elipse algo rítmica (e de lapso especular) rima com os precisos enquadramentos de seus filmes, vindos da arquitetura nipônica, com portas de correr que abrem precipícios propícios. No cinema de Ozu há o que Walter Benjamin, descrevendo as arcaicas casas de Ibiza em 1932, chamou de "espaço para o precioso".

Cena do filme "Era uma Vez em Tóquio" (1953), de Yasujiro Ozu - Divulgação

O lar japonês e sua extensão, o bar, são seus cenários profícuos, representação do mundo quase perfeito, mesmo que feito de imperfeições e fragilidades. Em artigo sobre o romance "Mont-Cinère", de Julien Green, Benjamin escreveu: "habitar uma casa é sempre um acontecimento cheio de magia e medo".

Mágico, Ozu é considerado o diretor mais japonês e mais universal. Épica doméstica, seus filmes são como música de câmara, tocados em tom menor, sem descalabro melodramático, em comedido arroubo de pathos e projeção planetária de tópicos cruciais da condição humana.

Em incerto viés, Ozu formaria uma trindade do cinema clássico japonês com Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa. Como se não bastasse a própria temeridade que é eleger qualquer panteão nas artes —afinal, não é questão de pódio—, a filmografia japonesa assombra por ter diretores como Eizo Sugawa, Kaneto Shindo, Kinuyo Tanaka, Masaki Kobayashi, Mikio Naruse, Nagisa Oshima, Seijun Suzuki, Shohei Imamura, Takahiko Iimura, Teinosuke Kinugasa.

Ozu é conhecido como o "poeta da rotina", por retratar prosaicos cantos e insuspeitos encantos do cotidiano. Fez praticamente o mesmo tipo de filme, com os mesmos atores e atrizes, em pequenas variações de enredo. Mesmo assim, ou justamente por isso, produziu, para citar Deleuze a propósito de Proust, uma "máquina de ressonâncias e epifanias".

"Era uma vez em Tóquio" (1953) versa sobre temas prototípicos (desagregação familiar, incompreensão solitária, claros enigmas, morte) de modo primoroso. Moradores do interior, pai e mãe idosos decidem visitar dois filhos em Tóquio, mas viram um incômodo.

Só a nora, viúva do filho morto, dedica-lhes atenção e carinho. O filme teria tudo para se tornar um melodrama daqueles de Douglas Sirk, em que o céu em technicolor desaba impiedosamente sobre a cabeça dos coitados personagens.

O tratamento de Ozu, contudo, tempera o indomável desespero humano com a contenção sóbria digna do mais sutil haicai. Imagine uma improvável equação derivativa comparatória: uma telenovela mexicana depurada até o mais alto contraste monocromático, em extremo e tresloucado minimalismo malevich-mondriânico —eis uma possível alegoria para traduzir um filme de Ozu. Em outra obra-prima, "Bom dia" (1959), expõe uma gostosa insurreição de crianças.

Ele nasceu em Tóquio, no ano de inauguração da primeira sala de cinema do Japão. A Era Taisho (1912-1926), de influxo liberal, burguesia ascendente e euforia reformista, formou seu espírito. Interessado por literatura e cinema, fugia da escola para ver filmes de Charles Chaplin, Lillian Gish e Pearl White. Em 1923, entrou nos estúdios da produtora Shochiku, como assistente de fotografia. Em 1926, ascendeu a assistente de direção.

Uma das peculiaridades estéticas de Ozu é a câmera baixa, um pouco abaixo de onde estaria o olho de uma pessoa sentada no tatame. Em seus filmes, as quebras de eixo do olhar (segundo a continuidade da gramática clássica hollywoodiana) desconcertaram e deslumbraram os críticos ocidentais.

O plano fixo permite à visão a livre exploração táctil da imagem. O silêncio é eloquente. Wim Wenders, que opera nas antípodas do modo vampiro-coveiro (o que se aproveita inescrupulosamente de artistas do passado), realizou um maravilhoso documentário em homenagem a Ozu: "Tokyo-Ga" (1985).

O cineasta japonês Yasujiro Ozu - Divulgação

Um capítulo à parte numa história materialista-dialética do cinema seria o da tradução de títulos originais de filmes quando lançados em países estrangeiros. O mito mofador da galhofa diz que em Portugal "Psicose" (1960, Alfred Hitchcock) foi lançado como "O Filho que Era a Mãe" e "O Ano Passado em Marienbad " (1961, Alain Resnais) como "Se Não me Falha a Memória".

O Brasil não ficou fora do certame do vexame, como nos casos de "Strangers on a Train" (1951, também de Hitchcock), exibido como "Pacto Sinistro", e de " Coeurs" (2006, Alain Resnais), como "Medos Privados em Lugares Públicos".

No entanto, o distribuidor brasileiro que traduziu "Sanma no Aji" (1962), literalmente "o gosto do sanma" (sanma é o peixe mais popular e barato do Japão), como "A Rotina Tem seu Encanto", estava em estado de graça poética.

O título em português revelou-se uma suma-súmula perfeita para o que viria a ser o filme-testamento de Ozu, seu literal filme derradeiro, que ressoa retroativamente no conjunto da obra. Toda a filmografia de Ozu é uma espécie de elegia aos alumbramentos rotineiros.

Foi por este título traduzido que fiz "Sem Título # 5: A Rotina Terá seu Enquanto" (2019; prêmio de melhor curta-metragem no É Tudo Verdade). Este cine-haicai de reapropriação recicla e remixa imagens e sons do último filme de Ozu, privilegiando as rimas e as simetrias de suas rigorosas composições de imagem projetadas na tela.

Minha outra incursão na obra de Ozu é "Sem Título # 7: Rara" (2021), tributo à atriz Setsuko Hara (1920-2015). Ela fez alguns filmes com ele, como "Pai e Filha" (1949), "Também Fomos Felizes" (1951), "Era Uma Vez em Tóquio" e "Fim de Verão" (1961). Trabalhar com o diretor teve implicação profunda para a atriz. Após a morte de Ozu, Hara abandonou o cinema para viver em reclusão. O quê mais pode ser dito sobre o impacto de uma morte (e do cinema)?

Ozu morreu na tarde de seu 60º aniversário, devido a um câncer na garganta. Visitar seu túmulo no templo Engaku, em Kita-Kamakura, é uma experiência inebriante. Os fãs depositam garrafas de saquê e de uísque em tributo ao cineasta-beberrão.

Não sei se os filmes dele batem o recorde de litrometragem etílica consumida na tela (John Huston estaria no páreo?). Em seu jazigo, os eflúvios etílicos serviriam de incenso, e as garrafas seriam flores vitrificadas, contíguas às cinzas do cineasta.

A única inscrição na lápide é a verdadeira epifania arrebatadora (você falaria em "iluminação profana", Benjamin?) da visita à tumba-relicário: "mu". Em referência à filosofia zen budista, "mu" significa "o nada, o vazio".

Quando Ozu escolheu tal sílaba alegórica e singular para cravar em sua cova, daria para dizer que nem Freud nem Nietzsche conseguiram ir tão longe e com tamanha síntese no desfuturo de uma desilusão, aliando coragem e desapego, preservando o mistério irremediável.

Ozu seria a "esfingay" do cinema. A efígie de sua homossexualidade permanece enigmática, controversa e tabu. A suposição baseia-se em sua vida inteira de solteiro, morando com a mãe, sem relações com mulheres.

Na adolescência, ele teria sido expulso da escola por escrever um carta de amor para um coleguinha. Entre antenados e entendidos programadores de cinema, reza a lenda de que vários rapazes (supostos amantes, platônicos ou não) se apinhavam no funeral de Ozu, em discretos e copiosos choros.

Desafiadora é a tentação de ler uma velada orientação gay em seu filmes, em que sempre há uma pressão social para que os personagens se casem. Em "Flor do Equinócio" (1958), filhos confrontam os pais na escolha do parceiro, o que estoura no conflito da aceitação. O cultivo da flor não seria costume exótico em extinção, mas espinho da institucionalização civil no crepúsculo das estações do comportamento.

Se, para Benjamin, a perda da aura foi o preço do ingresso na modernidade, Ozu recalibrou o valor da aura no banal não reificado. Sob a canja do kanji, vou do "mu" ao "ma" (o intervalo, espaço denso por vezes rarefeito).

Ideograma exponencial e cópula-cornucópia de signos magníficos, Ozu é um gênio das passagens, do entre-imagens. Seus planos são plenos de ocos e do não dito. Não se trata de resignação, mas de ressignificação. Adoraria ter tomado um porre com ele no balcão de algum izakaya (o típico boteco japonês). Para tentar aprender aquela sacada do saquê. Kampai, Yasu-San.

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