Descrição de chapéu
Filmes mostra de cinema de sp

'O Mal Não Existe' é fábula ecológica sobre cordialidade cruel

Filme do diretor de 'Drive My Car' lembra 'Bacurau' e 'The Office' com tensões de comunidade com acampamento de luxo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O Mal Não Existe

  • Quando Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa e Ryuji Kosaka
  • Produção Japão, 2023
  • Direção Ryusuke Hamaguchi

"O Mal Não Existe" começa e termina na floresta, com a câmera mirando do chão o topo das árvores enquanto se desloca, sempre em linha reta. Uma cena simples, mas que cria um efeito hipnótico na fusão do vertical —do olhar— com o horizontal —do movimento.

A gente descobre no início que essa visão vem de uma menina, que procura naquela floresta pelo pai, um faz tudo. Mas ela não consegue evitar de olhar para cima, e o espectador entende rápido o porquê. Da cadeira do cinema, parece que vemos um rio no céu, com curso formado nas brechas dos galhos e folhagens daquelas árvores.

O Mal Não Existe
Cena do filme 'O Mal Não Existe', de Ryusuke Hamaguchi - Divulgação

A imagem implica o equilíbrio natural das coisas, mas também vem acompanhada das notas soturnas da trilha sonora de Eiko Ishibashi. O filme está nos créditos iniciais e mal apresentou os seus personagens, mas já anuncia que algo à espreita. Só não se sabe o quê, nem o que quer.

O tema ecológico se manifesta como uma fábula. "O Mal Não Existe" acompanha as tensões de uma pequena comunidade nas montanhas japonesas com um empreendimento da metrópole. A simbiose entre homem e natureza do lugar está em risco pela construção de um acampamento de luxo.

Mas o culpado é mais soturno do que aparenta. Como o próprio título diz, o mal não existe na história, não pelos menos ao alcance do olhar.

Ryusuke Hamaguchi, o diretor do filme, é paciente com o mistério que propõe. Os primeiros 20 minutos servem como um prólogo estendido e acompanham a rotina daquela pequena família. O ritmo, calmo e minucioso, lembra o trabalho anterior do cineasta, o premiado "Drive My Car".

O longa cria a sua poesia nas atividades do pai, que com paciência coleta água para moradores, corta lenha para casa e até identifica uma pena para a filha.

A elegância de Hamaguchi está nos detalhes. Em certo momento, ele estabelece a distância curta do vilarejo para a floresta em um único plano. Com a câmera na traseira do carro do pai, mirando a rua deixada para trás, o filme mostra em segundos o percurso quando ele busca a filha na escola.

Tudo no vilarejo lembra uma utopia bucólica, então a aproximação de um negócio de fora naturalmente gera um ruído ali. O estranhamento já começa na manhã seguinte, quando representantes do negócio fazem uma apresentação aos moradores.

A dupla, um homem e uma mulher, se esforçam para convencer a vila de que o acampamento, um "glamping", traz benefícios comerciais a todos. Mas os argumentos caem por terra quando eles abrem para perguntas do público, com muitos problemas apontados pelos habitantes.

A cena é sem dúvida a mais engraçada da carreira de Hamaguchi, o que é surpreendente considerando os filmes melancólicos que já fez. Os questionamentos à apresentação viram um massacre de oratória, dilacerando os dois estranhos até em postura.

A situação lembra um episódio de "The Office" por uma lógica de "Bacurau", com a posição da fossa séptica no acampamento servindo de gatilho.

Mas nada em "O Mal Não Existe" chega ao ponto da violência do filme de Kleber Mendonça Filho. A reunião termina com as duas partes de acordo sobre as deficiências do projeto. O líder local defende que a comunidade quer ajudar o negócio, enquanto os representantes se comprometem a buscar uma solução.

Essa negociação das partes é o norte da narrativa, que aos poucos revela uma crítica franca à isenção dos maus atos. De volta à cidade, os dois representantes tentam negociar com os seus superiores, mas eles preferem a solução rápida e desonesta. Eles tem pressa porque o governo japonês concede um subsídio ao negócio por estimular a economia no pós-pandemia, e o dinheiro está para ser suspenso.

A crítica ao capitalismo tardio fica evidente aí, e o filme se concentra nas más conciliações desdobradas dessa decisão —o que inclui a comunidade. Hamaguchi equilibra a trama entre o humor e o suspense, sempre para apequenar os estranhos dentro daquela região.

A distância física de cada núcleo para a floresta também dá o tom do desastre em movimento. Se o pai e a filha do começo moram na floresta, os dois subalternos da empresa demoram meio dia para chegar à região —os donos do negócio, então, nem veem a cor das árvores.

Daí em diante vale preservar as pequenas reviravoltas, mas tudo o que acontece é surpreendente para o cinema de Hamaguchi. O diretor vive uma carreira meteórica nos festivais, inclusive neste filme que lhe rendeu um prêmio do júri no Festival de Veneza. Mas ele até então se concentrava em histórias urbanas e sobre fantasmas, privilegiando o lado individual e a relação com o passado.

Desta vez, porém, Hamaguchi olha para o futuro. Ele faz um filme rasgado na comédia, próximo da sátira, e dá um golpe no estômago do público no desfecho. As suas assombrações ainda estão lá, em um final que brinca com o mistério.

O que nos leva de volta ao topo das árvores. Em meio ao final impactante de "O Mal Não Existe", a câmera volta a encarar o céu da floresta, no mesmo avanço vagaroso do início. Nesse momento, o espectador pode pensar que o rio desenhado pela folhagem está contaminado, e o pior é que ele deve estar correto.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.