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Demétrio Magnoli

'Bacurau' é testemunho da extinção de vida inteligente na esquerda brasileira

Noutro tempo e lugar, as metáforas do filme seriam atribuídas a pré-adolescentes excitados

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Demétrio Magnoli

A cena de abertura —as estrelas, o globo azul visto do espaço, a passagem de um satélite artificial, ao som de “Não Identificado” na voz de Gal Costa— é tudo que se salva de “Bacurau”

O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles deve ser visto como um testemunho de nossa miséria intelectual —ou, mais precisamente, da extinção de qualquer traço de vida inteligente na esquerda brasileira.

“O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha, fixou no cinema brasileiro o teorema político do terceiro-mundismo. Mas era 1969. “Bacurau” retoma o teorema, meio século depois, como se um muro não tivesse caído e o mito de Cuba ainda brilhasse ali na esquina.

Na trama, tão simples como uma cartilha do PCdoB, a burguesia nacional associa-se ao imperialismo para massacrar o povo. Há uma divisão do trabalho: a burguesia nacional priva o povo da água; já o imperialismo encarrega-se de matá-lo, a rajadas de tiros, por mero prazer perverso.

Noutro tempo e lugar, as metáforas seriam atribuídas a pré-adolescentes excitados. O imperialismo, claro, é americano, e emerge como um grupo de extermínio invasor comandado por um alemão nazista americanizado. O atirador psicótico, do tipo que conduz massacres em shopping centers, funciona como modelo descritivo dos americanos. 

A burguesia nacional é o Brasil Sul —e, mais especificamente, São Paulo, o palco de “execuções públicas no Anhangabaú”. Mas o Brasil branco e mau como um pica-pau estende seus tentáculos até o longínquo povoado de Bacurau por meio do odiado prefeito local, uma figura que intercambia remédio contaminado e comida estragada por votos, e, crucialmente, colabora na surdina com os estrangeiros exterminadores. 

Se a burguesia tem um locus geográfico, o povo também tem. O povo é o Nordeste, e, mais especificamente, o sertão pernambucano, onde se situa a imaginária Bacurau. Bom, solidário e unido como sempre deve ser, o povo exibe qualidades novas, estranhas ao molde glauberiano do passado. Ele transa à vontade, ignora tabus moralistas, consome democraticamente um psicotrópico oral que estimula o humor e dilata o prazer. Bacurau, Baixo Leblon: um Glauber do século 21.

Do seio do povo nasceram os chefes e os soldados das facções do crime. São bandidos-guerrilheiros, meio Comando Vermelho, meio Sierra Maestra. O povo gosta deles, mas os rejeita como desviantes —até a hora da verdade. Diante do perigo mortal, do massacre iminente, os filhos enjeitados retornam, lideram a resistência armada, salvam o povoado sitiado. Fernandinho Beira-Mar, Marighella, Che Guevara.

Nesse ponto, a curva do clímax, Glauber cede lugar ao Tarantino de “Bastardos Inglórios”, o filme de estética fascista que investe na sedução do sangue. Não é mera inspiração, mas pura imitação. Os diretores, em transe populista, conclamam os espectadores a aplaudir freneticamente, pavlovianamente, as gráficas execuções dos invasores americanos. Hollywood é aqui.

Na cena final, “Bacurau” renuncia ao véu da ficção, desvelando-se como o que é: uma peça de propaganda política. Aí, uma voz em off homenageia os mártires do povoado que caíram sob os tiros dos exterminadores —e, entre os nomes, surgem lado a lado Marielle Franco, assassinada por milicianos, e Marisa Letícia, vítima de um AVC.

A mensagem ostensiva de “Bacurau” talvez merecesse algum exame em 1969. Hoje, a atenção deve se voltar para sua mensagem involuntária, que ajuda a decifrar a ascensão de Jair Bolsonaro. Nossa ultradireita feroz, caricata, lunática é a imagem espelhada de nossa esquerda anacrônica, primitiva e mistificadora. Dois objetos bem identificados.

Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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