Como Leonilson fez da arte um diário de suas angústias, amores e do medo da morte

Artista pioneiro em desenhar relações LGBT também retratou o adoecimento por Aids para enfrentar o preconceito

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'O Templo', de Leonilson, de 1992

'O Templo', de Leonilson, de 1992 - Vitor Butkus/Divulgação

São Paulo

"Não sei o que estou procurando. Às vezes têm uns caras por quem fico apaixonado, e acho que eles são o lugar que tô procurando, mas eles são só uma paisagem linda no meu caminho", diz Leonilson em uma das gravações que compõem seu diário em áudio.

A confissão é um prelúdio para a obra de um dos principais artistas brasileiros contemporâneos, que mesclou desenho, pintura, bordado e poesia para falar das próprias angústias e paixões por outros homens, no período em que o preconceito era impulsionado pelo temor da Aids.

O artista Leonilson - Ronaldo Miranda © Projeto Leonilson

A partir desta sexta-feira, sua obra é retomada em uma grande mostra retrospectiva no Masp, que dedica este ano a exposições que refletem sobre a história LGBTQIA+ na arte, em sintonia com um movimento internacional que põe em evidência a produção de artistas queer.

Com o desenho de traço fino, às vezes acompanhado de palavras, Leonilson descrevia seus desejos e frustrações por símbolos, quase como um surrealista. Em algumas obras, a pintura se somava ao desenho, como numa tela em que um coração realista está ao centro, num fundo vermelho. Dele saem duas veias, nas quais lê-se "inconformado" e "solitário". Sobre a figura paira, como um agouro, a frase "Leo não consegue mudar o mundo".

O órgão se repete em outros trabalhos, como em "Pescador de Pérola". Aqui, o traço se transforma em linha, e o coração foi costurado sobre um tecido verde e transparente. Seus trabalhos têxteis, nos quais as figuras são costuradas como detalhes, foram os mais proeminentes nos últimos anos de sua vida —que, no Masp, correspondem aos últimos núcleos da exposição em ordem cronológica.

Em uma série de pequenos desenhos, Leonilson celebra cada um de seus amores. Em um deles, duas espadas se cruzam sobre o piano, com o título "O Músico, o Desastre". Em outro, um polvo segura uma bola colorida em cada tentáculo: "O Melhor Amigo, o Várias Possibilidades".

"Ele curtia um amor impossível. Tem algumas pessoas que são platônicas. Às vezes ele se apaixonava até pelo ator do filme que a gente estava vendo, como o Daniel Day-Lewis", diz Leda Catunda, artista e amiga de Leonilson, que o compara ao protagonista de "Os Sofrimentos do Jovem Werther", de Goethe. Werther morre apaixonado por uma mulher, mas sem dizer nada a ela. Leonilson gostava do livro. "Ele se projetava um pouco nesse sujeito hiperromântico".

Apesar das várias paixões, o artista lamentava a solidão. Seus amantes não negavam sexo, mas careciam de afeto. "Talvez seja mais difícil para pessoas dessa geração atual entenderem que, nos anos 1980, 'sair do armário' não era muito tranquilo. Por vir de uma família extremamente católica, talvez ele não estivesse preparado", diz Catunda.

Por escolha da família, que não quis tornar públicas as narrações dos seus encontros sexuais, até hoje o diário em fita nunca foi publicado. Mais de 30 anos após a morte de Leonilson, Catunda acredita que a publicação esteja próxima, conforme o desejo do artista.

Leonilson reutilizava signos com significados próprios para se comunicar em sua obra —a exemplo do fogo, associado a uma explosão de sentimentos, da imagem de são Sebastião, simbólico para a comunidade gay, e da cruz, ligada à dualidade e à culpa.

"Ele gostava muito de dar um telefonema estranho: 'Hoje eu fiz uma amarelinha que tem um vocalzinho, e daí vai descendo, e aí eu escrevi não sei o quê", afirma Catunda, também uma principais figuras da Geração 80, que retomou a subjetividade na arte depois de uma década centrada nos geometrismos e abstrações.

Apesar de Leonilson ter participado do movimento, suas obras intimistas se distanciaram das "telas coloridas de gestos expressionistas que identificaram a produção de jovens artistas naquele momento", diz Adriano Pedrosa, curador da mostra.

As obras são por vezes também políticas. O artista ilustrou por anos a coluna da jornalista Barbara Gancia na Folha, o que contribuiu para aproximá-lo das notícias diárias.

"Ser gay hoje em dia é a mesma coisa que ser judeu na Segunda Guerra", disse o artista em uma de suas gravações, referindo-se a epidemia de Aids e ao preconceito ligado a ela. "Você pode ser o próximo, a praga está aí, pronta para te pegar."

Em uma obra, copos desenhados são rotulados com nomes de grupos marginalizados, como "os negros", "os judeus", "os homossexuais", "as mulheres", "os aleijados", "os aidéticos".

Leonilson descobriu ser soropositivo em 1991, dois anos antes de morrer. Desabafou sobre seu adoecimento, o medo da morte e o receio de contar sobre a doença para a família. Em seus últimos dias, chegou gravou as alucinações decorrentes da febre. "Agora, os trabalhos são tudo que eu tenho mesmo. É a minha autobiografia, o meu diário. Uma tela não é muito diferente do que uma manhã minha."

A fragilização do seu corpo se nota no traço trêmulo dos últimos trabalhos, também menos coloridos e vibrantes, e em obras que comentavam sua situação —como na série em que um braço toma soro sob a palavra "margarida", ou uma gota de sangue é intitulada de "o perigoso", em referência a um corpo vulnerável e ameaçador para a sociedade.

Sua última obra, uma instalação feita para a Capela do Morumbi, foi remontada no Masp. Lázaro, que Jesus ressuscitou quatro dias após sua morte, é representado por uma camisa duplicada, como um autorretrato duplo. Ao lado dele, uma longa saia evoca uma figura materna. Ao fundo, duas camisas sobre duas cadeiras, "Da falsa moral" e "Do bom coração", representam bem e mal na cena derradeira.

"A instalação compõe o cenário para sua própria missa, um comovente rito de passagem final, expressando a transição da vida para a morte", diz Pedrosa, que foi próximo a Leonilson. "Sua força poética vai muito além da doença, embora seja um testemunho extraordinário daquele momento."

O curador foi também responsável pela organização da Bienal de Veneza desse ano. A obra de Leonilson passou pela Cidade das Águas em 2007 —além de estar presente em coleções do MoMA, Lacma, Pompidou e Tate.

Ainda assim, o artista poderia ser considerado um anti-herói, por não se encaixar em nenhum movimento artístico contemporâneo. "Sua obra é singular e pessoal, possuindo uma estética, genealogia e poética muito próprias", diz Pedrosa. Ele alerta, porém, para o perigo de compreender os trabalhos como testemunhos fidedignos de sua vida.

"Em suas entrevistas, ele admite contradições ou muda de opinião, e, mesmo em seus áudios, reconhecemos por vezes um Leonilson fabulado. É muitas vezes impossível saber se o sujeito representado na obra é o artista, outro personagem, ou uma versão fabulada de algum desses."

Certa vez, Leonilson se queixou de uma pessoa que, ao ver sua obra, a acusou de ser muito pessoal. "Parece que é uma regra, eu precisar fazer coisas impessoais", argumentou ao gravador. "Meus trabalhos são assim mesmo, eu não faço coisas impessoais, eu faço coisas para quem eu amo."

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