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Literatura de Luandino Vieira olha bem nos olhos dos colonizadores

Protagonista de 'A Vida Verdadeira de Domingos Xavier', assim como o autor angolano, tem postura altiva diante de Portugal

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Ronaldo Vitor da Silva

Professor e pesquisador, é doutorando em teoria literária pela Unicamp

A vida verdadeira de Domingos Xavier

  • Preço R$ 54,90 (104 págs.); R$ 46,90 (ebook)
  • Autoria José Luandino Vieira
  • Editora Kapulana

O escritor José Luandino Vieira, em uma de suas entrevistas à imprensa portuguesa, certa vez contou que, ao ser interrogado no Tarrafal —campo de concentração da ditadura salazarista—, sempre olhava nos olhos dos inquisidores, para que entendessem que ele não cederia de suas convicções.

O escritor angolano José Luandino Vieira, que relança 'A Vida Verdadeira de Domingos Xavier' pela Kapulana - Rafael Hupsel/Folhapress/Rafael Hupsel/Folhapress

A postura altiva que o autor angolano usou durante a luta pela libertação de seu país também é representativa de sua literatura —como exemplifica o romance "A Vida Verdadeira de Domingos Xavier", republicado pela Kapulana após décadas distante do mercado brasileiro.

Escrito em 1961, no período em que o autor esteve preso pelo Estado Novo português, o livro não separa militância política de uma refinada preocupação estética.

A obra traz a história do tratorista Domingos Xavier, que é preso pelas autoridades ao retornar de um dia de trabalho e vai parar em uma cela insalubre, sob torturas intermináveis. Enquanto isso, Maria e Sebastião, sua mulher e seu filho, atravessam as ruas de Luanda à procura do protagonista, questionando o aparato colonial.

É a partir dessa prisão injustificada que a obra de Luandino Vieira faz de Domingos Xavier um homem que corporifica o sonho libertador que teria êxito mais de dez anos depois, em 1974, quando Angola conquistou sua independência.

Nesse sentido, a firmeza das atitudes do protagonista, sua solidariedade, a retidão no olhar e a recusa do papel de delator são gestos que propõem uma identidade elevada para um povo que reagia aos desmandos de Lisboa.

A vida verdadeira descrita no título não é, portanto, aquela oprimida, e sim a que se desdobra da integridade frente a violência. Tal como Luandino, Domingos Xavier não se curva, morrendo com a dignidade de um herói, se necessário.

Se por um lado o romance é combativo e carregado de utopia, por outro, ele não deixa de evidenciar os custos de uma existência dura, empobrecida e, ainda assim, repleta de esperança.

As descrições da segregação racial e espacial que se materializa nos musseques —periferias onde moravam os negros—, as crianças que brincam na terra ou os sofrimentos de Maria, são exemplos que reconhecem a agência dos sujeitos e seu desejo de viver, a despeito de todos os contratempos.

Não à toa, em uma passagem onde a chuva alaga os bairros pobres de Luanda, o narrador informa que nos dias seguintes todos "iam trazer materiais para reconstruir, iam fazer empréstimos para enterrar os meninos mortos e continuariam teimosamente a viver".

Também há de se destacar o arrojado tratamento da linguagem, que pelo trabalho com a oralidade expressa uma produção literária autônoma, distante de tons panfletários e representativa de experiências humanas negadas pelo colonizador.

A sintaxe portuguesa é reinventada por Luandino, que absorve o cotidiano local com propriedade, permitindo o diálogo com os sujeitos e sua geografia: "Ená, Luanda então é assim?", pergunta o livro ao leitor.

"A Vida Verdadeira de Domingos Xavier" foi publicado no Brasil pela primeira vez em 1979, como volume que inaugurava a coleção "Autores Africanos", da editora Ática.

Naquele contexto, o romance poderia servir como um sopro de inspiração e radicalidade não só para os movimentos negros do país, que miravam o continente africano como parte de suas referências políticas, como também para os envolvidos em propostas diversas de combate às desigualdades sociais e econômicas. A ditadura, afinal, estava em curso.

Hoje, a memória aberta dos regimes autoritários e a emergência do fascismo são algumas das linhas que aproximam as duas pontas do Atlântico, Angola e Brasil, fora o intercâmbio literário com nomes como Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa.

Ao ler "A Vida Verdadeira de Domingos Xavier" não soa estranho inferir quantos Domingos haveria em nossas ruas ou quanto as nossas favelas espelham musseques —ou até mesmo se as mãos que açoitavam angolanos não são irmãs daquelas que hoje matam pretos e pardos.

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