Rastros de Ford na história do cinema
"Dentro do formato clássico narrativo do qual foi um dos principais construtores, John Ford desenvolveu uma atenção para o detalhe que marca sua mise-en-scène e a torna reconhecível de filme para filme, independente do gênero ao qual se filia (drama histórico, filmes de temática social, comédia, filmes de guerra, western etc.)". Assim o professor de cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF) João Luiz Vieira define uma das particularidades da obra do diretor mais premiado com o Oscar (recebeu quatro estatuetas como melhor diretor).
Em entrevista à Folha, Vieira analisa a importância de Ford para a história do cinema e comenta algumas das sequências mais importantes da sua obra -em filmes como "As Vinhas da Ira" e "Rastros de Ódio".
Folha - Quais seriam, em linhas gerais, as marcas indeléveis do "estilo" John Ford? É leviano falar em "estilo" para um cineasta que se recusava terminantemente a ser chamado de "artista"?
João Luiz Vieira - Se tem algo que nos surpreende ao rever boa parte dos filmes dele hoje, com as facilidades que a visão e revisão via DVD possibilitam (ou seja, podemos estudar os filmes, congelar imagens, fragmentar sequências etc.), é a simplicidade com a qual Ford filma seu material, monta e conta muito bem uma história, apesar de toda a complexidade de sentidos que vão se abrindo.
No geral, não há virtuosismos de câmera, nem enquadramentos com ângulos inusitados, e a linguagem não fica chamando atenção continuamente para si mesma. Quando isso eventualmente acontece, não é para efeitos espetaculares ou embelezamento decorativo. Quando há algo que chama atenção em termos do uso formal de um elemento da linguagem --o movimento de câmera, por exemplo--, isso acontece exatamente em cima de um regime de economia formal onde, por conta de enquadramentos fixos na maior parte da narrativa, o movimento de câmera, quando se dá, ganha um sentido e uma força realmente impactantes.
Veja o caso exemplar de um de seus maiores filmes, "As Vinhas da Ira" (1940): os planos, em sua maioria, são fixos, câmera parada, numa relação quase fotográfica com aquele ambiente e seus personagens. De repente, quando a família entra num daqueles acampamentos destinados a receber multidões de miseráveis em busca de emprego e sobrevivência, Ford (e o seu excelente fotógrafo, Greg Tolland, o mesmo que no ano seguinte trabalharia com Orson Welles em "Cidadão Kane") coloca a câmera no ponto de vista de seus personagens dentro daquele calhambeque roto para mostrar, em movimento, a surpresa da família (e dos espectadores, num processo de espelhamento e identificação).
Nesse momento, eles percebem que não estão sós, que fazem parte de uma legião de excluídos, sem teto, sem trabalho e vivendo na maior precariedade. Como no movimento de câmera que expressa essas impressionantes imagens, aos poucos a família se dá conta do engodo que foi a "terra prometida" da Califórnia. Nesse filme, é possível comparar Ford com o diretor japonês Yasujiro Ozu, outro mestre da economia, e que também não gastava seus movimentos de câmera à toa e sim para momentos muito especiais ("Era uma Vez em Tóquio" traz exemplos igualmente extraordinários).
Folha - Qual seria a principal marca dos enquadramentos de John Ford?
João Luiz Vieira - Penso, em primeiro lugar, nas relações que se estabelecem entre a geografia, a paisagem e o ser humano, levando em conta, sempre, os dois espaços muito bem definidos por Noël Burch [crítico americano radicado na França, autor de "Práxis do Cinema"] para caracterizar a totalidade da imagem cinematográfica. Ou seja, a consciência de que aquilo que entendemos como espaço cinematográfico é, na verdade, sempre uma tensão entre o que está dentro e fora do quadro, do campo de visão. Assim, fica mais claro perceber o peso dramático no interior do quadro e das linhas de fuga do horizonte --que nunca se esgotam ali na margem do quadro ou da tela onde o filme está sendo projetado, estendendo-se sempre para os espaços fora da tela, que é tanto o nosso espaço, de nossa presença, percepção e emoção, como também da História (com H maiúsculo).
Momentos (e não são poucos) em que os personagens se encaminham para um horizonte, como no final de vários filmes. No interior do quadro, Ford sabe muito bem lançar mão de contrastes na justaposição da geografia enquanto, simultaneamente, cenário e sentido e o uso que fez da espetacular geografia do Monument Valley (região situada na fronteira entre os Estados de Arizona e Utah que, apesar de representar boa parte do Oeste norte-americano é, talvez, apenas o dobro em área da Ilha do Governador, no RJ) também são exemplares naquilo que pode servir de ambientação narrativa para os dramas do ser humano, no desenvolvimento de temas que contrastam o "civilizado" e o "selvagem" (numa problemática perspectiva eurocêntrica, sempre), o efêmero e o duradouro etc.
Folha - Seria pertinente dizer que Ford atingiu um equilíbrio perfeito entre "forma" e "conteúdo"?
João Luiz Vieira - Acredito que sim. Dentro do formato clássico narrativo do qual foi um dos principais construtores, John Ford (nunca isolado, mas sempre em conjunto com uma equipe mais ou menos constante em diversas fases de sua carreira) desenvolveu uma atenção para o detalhe que marca sua mise-en-scène e a torna reconhecível de filme para filme, independente do gênero ao qual se filia (drama histórico, filmes de temática social, comédia, filmes de guerra, western etc.).
Foi um dos mestres da unidade orgânica, princípio em que os elementos estéticos da linguagem cinematográfica se encontram em "diálogo" uns com os outros e que define, inclusive, esse conceito de mise-en-scène, tão caro aos teóricos do autorismo [que defende a ideia de que o cineasta também é um autor]. Daí é importante estar atento e perceber que um determinado enquadramento, com sua composição, iluminação, relação de distância entre a câmera e o assunto, angulação, mobilidade, tudo isso constrói sentidos exatamente pelo recorte e em conjunto com a movimentação e expressão dos atores, figurino, cenografia (natural ou em estúdio), pela duração do enquadramento e pela sua relação com o que veio antes e o que vem a seguir. Ou seja, lado a lado com outros mestres do cinema (como o alemão Fritz Lang ou o japonês Ozu, de quem tivemos a oportunidade de assistir recentemente a toda sua filmografia em mostra no CCBB), também podemos afirmar que, para Ford, tão importante quanto uma boa história é a forma de se contar essa história.
Uma está visceralmente integrada à outra e perceber isso nos mínimos detalhes é um prazer que nos faz sempre retornar a seus filmes. Um bom percurso para quem for assistir aos filmes da mostra é prestar atenção na colaboração entre Ford, o fotógrafo Greg Tolland e o ator Henry Fonda, imprescindíveis para o bom resultado alcançado com "As Vinhas da Ira", para citar apenas um exemplo.
Folha - Orson Welles se diz extremamente influenciado por Ford. Apesar de ser um cineasta essencialmente clássico, Ford antecipou características do cinema moderno? Em que filmes?
João Luiz Vieira - Além dos aspectos mais evidentes na admiração que Welles tinha por Ford e que aparece, sem sombra de dúvidas, em "Cidadão Kane" (por exemplo, na ênfase narrativa que Welles atribui ao flashback), revendo os filmes de Ford percebe-se, aqui e ali, algo que vai de encontro às normas ditadas pelo clássico, onde, em geral, quando o filme ou o livro terminam, está tudo ali, explicado, entendido, fechado, esclarecido. E "Rastros de Ódio" sempre retorna como um texto exemplar: a cada vez que revejo esse filme, saio com mais dúvidas do que certezas. E parte do fascínio e obsessão com esse filme talvez venham exatamente desse aspecto de ambiguidade generalizada que o filme tem.
Há momentos em que os personagens não sabem muito bem o que está acontecendo --e também os espectadores. Não é um filme que se paute pela clareza, muito pelo contrário. A cada experiência, uma nova visão, e, com ela, novos enigmas vão surgindo, se superpondo em novas dimensões, vão se abrindo. Desde questões bastante pragmáticas (quanto tempo dura a tal busca pela menina sequestrada pelos índios?) até temas complexos como a centralidade do papel da mãe-esposa que abre o filme, as relações entre incesto, miscigenação e racismo, o papel da música e tantas outras.
No momento, estou oferecendo uma disciplina na UFF sobre cinema de gênero (o filme noir) e me pergunto sobre as ambiguidades que "Rastros de Ódio" traz em relação às contradições que sempre marcaram o western, por exemplo, na representação dos povos indígenas. O western enquanto gênero pode ser uma camisa de força nesse aspecto e como Ford, dentro dessas limitações, trabalhou certas tensões nessa representação? Como se dão a afirmação/desconstrução de certos estereótipos típicos do faroeste?
É uma tensão que, a meu ver, só pode ser entendida no contexto das lutas pelos direitos civis nos EUA que começavam a ganhar força pela metade dos anos 50 (o filme é de 1956) e uma legislação que também começava a se abrir para aceitar casamentos interraciais. "Rastros de Ódio", mesmo situando-se na segunda metade do século 19, interpela esse momento dos anos 1950 de forma muito especial. Enfim, ambiguidades, incertezas, estruturas em aberto, são marcas estilísticas e narrativas de um cinema moderno.
Numa relação com o cinema moderno brasileiro, sempre me chamou a atenção (além de semelhanças entre a paisagem do nosso sertão e as pradarias secas do sudoeste norte-americano) a óbvia comparação de gênero entre o western e o que aqui chamaram, às vezes pejorativamente como é de péssimo costume, de "nordestern" --uma outra semelhança entre o personagem de John Wayne em "Rastros de Ódio", Ethan Edwards, e o matador de cangaceiros Antonio das Mortes (Maurício do Vale) de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha. Para além da composição do personagem brasileiro, com aquela idêntica capa escura protegendo o corpo das agruras da paisagem, também esse lado sombrio, vingativo, enigmático. Lembro de ter visto nos arquivos do Tempo Glauber [instituição no Rio de Janeiro dedicada à obra do cineasta] um desenho do jovem Glauber para a composição de Antonio das Mortes exatamente igual a Ethan Edwards... e acho que tem mesmo muita coisa a ver.
Folha - De Welles a Pedro Costa [cineasta português], Ford é citado como referência. Por que seu cinema permanece tão influente até hoje? Quais seriam os aspectos "contemporâneos" de sua obra?
João Luiz Vieira - Vou tentar ser breve: citarei apenas um exemplo, bastante fresco, já que aconteceu recentemente, em sala de aula. Preparando meus alunos para a mostra John Ford, mostrei "As Vinhas da Ira", considerado por muitos a maneira mais adequada de introduzir Ford para as novas gerações.
Pois bem: foi uma experiência que há muito eu não tinha visto nos bancos da UFF e, para mim, já valeu o semestre. Terminada a sessão, todos (eu inclusive) estavam engasgados de emoção, sem palavras imediatas para exprimir nada além do espanto e da atualidade do filme. Explicações? Não sei direito, mas, para além de ser, de novo, uma boa história (John Steinbeck por trás) e muito bem contada pelos aspectos em parte já ditos acima, acho que tem o momento outra vez de reavaliação do capitalismo tardio, das ressonâncias da última crise econômica (e o papel dos banqueiros nisso tudo, como foi em 1929), hoje acentuada pela consciência das mudanças climáticas e da destruição ecológica.
Do buraco para o qual esse modelo econômico e falido está nos levando a todos (pensar, por exemplo, no acidente no Golfo do México)... Essa exploração sempre abusiva e gananciosa dos recursos naturais (aqui a destruição da região amazônica), enfim, me parece um filme visionário, distópico, permanente, "universal" no sentido clássico (aqui um sentido interessante para esse conceito já discutido) de seu humanismo...
O estilo do filme, que trafega pelo realismo documentarista que vinha sendo construído na década de 30 (por um Joris Ivens, ou mesmo uma Leni Riefenstahl, os ingleses, o Instituto Nacional de Cinema Educativo daqui)... não sei, tudo tão diferente do cinema pipoca blockbuster dos efeitos especiais que também fascinam estes jovens...acho que, sinceramente, foi uma descoberta para muita gente!
Folha - Qual seu momento favorito de um filme de Ford?
João Luiz Vieira - Acho difícil esquecer toda a sequência de abertura de "Rastros de Ódio": desde os créditos iniciais, com o título do filme original -"The Searchers"-- numa tipografia típica de faroeste, letras em vermelho sobre um fundo de tijolos em adobe cor de terra, acompanhados pela música, cuja letra cria um enigma ao lançar para o espectador a pergunta radical do filme --"o que faz um homem vagar sem rumo por aí e deixar para trás o conforto de um lar?"-- à chegada misteriosa de um forasteiro soturno, mal humorado, Ethan Edwards, interpretado por John Wayne, surgindo no meio da paisagem árida do deserto, emoldurado por duas formações rochosas do Monument Valley.
Um pouco antes, uma porta foi aberta e uma mulher impecavelmente vestida num avental branco sobre um vestido azul o vê chegar ao longe. Ela aperta o avental numa das mãos, perturbada pelo aparecimento daquele estranho. Um a um vão saindo para o alpendre os moradores da casa, numa coreografia de perfeito equilíbrio. Ele chega e é logo identificado por um tapete navajo pendurado numa daquelas varas de amarrar cavalos, que funciona também como um limite a separar o lado selvagem da natureza (incluindo os índios) e a civilização, representada pela casa, pela família e pela cultura europeia dos imigrantes.
No que o forasteiro cruza essa fronteira, o tapete milagrosamente desaparece de cena e Ethan é reinserido na sociedade, numa relação de parentesco onde ele é simultaneamente irmão, cunhado e tio. Pouquíssimas palavras protocolares de boas-vindas são trocadas e a mulher caminha para trás, entrando de novo na casa, seguida por todos, especialmente por Ethan que parece, uma vez mais, atraído pelo corpo da cunhada. Está tudo ali, nesses primeiros fotogramas e, em menos de um minuto e meio de filme, você já sabe que está diante de uma verdadeira obra-prima.
Livraria da Folha
- Coleção "Cinema Policial" reúne quatro filmes de grandes diretores
- Sociólogo discute transformações do século 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade