"Tive que aprender a perdoar", diz Rodney King
Rodney King reflete sobre a pergunta em silêncio, enquanto, com ar distraído, esfrega a cicatriz em sua mão esquerda --um grande vergão preto que se espalha sobre os nós dos dedos, chegando até o pulso.
"Não", ele diz. "Não é doloroso reviver aquele momento. Me sinto à vontade com minha posição na história americana." Então, quando a entrevista mal começou, ele parece se corrigir e, sem aviso prévio, mergulha no recanto mais sombrio de sua memória. "Foi como ser violentado, destituído de tudo, ser espancado até quase a morte ali no concreto, no asfalto. Naquele momento eu conheci a sensação de ser escravo. Senti como se estivesse em outro mundo."
Mas as palavras parecem destoar, porque é uma tarde ensolarada, estamos num restaurante chique e o tom da conversa mudou de repente. King olha fixamente para nada em especial. O momento passa. Em um tom mais ameno, ele retorna a seu pensamento original. "Conheço e valorizo o que significa acordar, estar vivo e compartilhar minha história. Sou abençoado por poder estar aqui e poder falar disso." Ele sorri, um sorriso incerto.
"Disso", é claro, é a noite de 3 de março de 1991, quando quatro membros do departamento de polícia de Los Angeles cercaram King, prostrado no chão ao lado de uma avenida, e o golpearam repetidas vezes. Foram 56 golpes de cassetete e seis chutes, conforme determinado mais tarde numa análise quadro a quadro das imagens.
Joe Klamar - 30.abr.12/France Presse | ||
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Rodney King chega ao lançamento de seu livro "The Riot Within - My Journey from Rebellion to Redemption" em LA |
Isso aconteceu antes do advento dos telefones celulares com câmeras, mas, desde sua sacada, o encanador George Holliday, que acordou com as sirenes da polícia, registrou tudo com uma câmera de vídeo. Ele entregou as imagens granulosas, amadoras, a uma rede de TV local, a KTLA, e com isso pôs em andamento uma série de fatos que conferiram a King, como ele mesmo diz, uma posição na história americana.
Esta semana, duas décadas mais tarde, terminando um risoto e tomando chá num terraço de restaurante na zona oeste de LA, King insiste que já aceitou o papel. Na realidade, tanto ele quanto o país ainda têm dificuldade para encará-lo. Coisas demais --ou de menos, poderíamos argumentar-- aconteceram desde então para que não fosse assim.
Um homem negro está na Presidência, mas os homens negros ainda enfrentam probabilidades desproporcionais de terminar na prisão. Ou mortos, como Trayvon Martin, o adolescente alvejado na Flórida. "Quando o vejo gritar, ouço o mesmo grito que eu soltei em 3 de março de 1991", diz King. "É o grito da morte."
PASSATEMPO
O ex-trabalhador braçal de 47 anos é um misto difícil de definir. Fisicamente imponente, com 1,88 metro de altura e um torso poderoso, ele é tímido, mesmo assim, e manca ao andar. Com sua camisa branca, gravata da moda e calças escuras, poderia passar por empresário, não fosse o colar de contas vermelhas e pretas que ele próprio fez. "Isso ajudou a passar o tempo."
King faz afirmações dramáticas e mostra relances de insight e humor em meio a sentenças pela metade cujo significado reluz e se espalha, como peixes em água turva. Ele diz que sua concentração desigual é resultante dos danos cerebrais provocados pelo espancamento. Décadas de consumo excessivo de álcool e muitos acidentes de carro não ajudaram. "Ahn, o que eu estava dizendo mesmo?", pergunta em dado momento, perdendo o fio da meada.
Estávamos falando da revolta racial que carrega seu nome. Esta semana é o vigésimo aniversário da explosão de raiva que destruiu boa parte de Los Angeles e abalou os Estados Unidos, depois de um júri composto quase inteiramente por brancos ter absolvido os agressores uniformizados de King.
O ressentimento vinha se acumulando havia anos na comunidade negra de LA em função da pobreza, do desemprego e da brutalidade policial. A absolvição dos policiais, em 29 de abril de 1992, desencadearam uma fogueira apocalíptica que durou uma semana.
"Pus meu chapéu de reggae com tranças, para ninguém me reconhecer, e fui até o centro para ver o que estava acontecendo", King recorda. "Foi simplesmente...". A voz se cala, derrotada pela magnitude do que aconteceu. Quando a revolta acalmou, 53 pessoas tinham morrido, milhares estavam feridas e US$1 bilhão em bens estavam reduzidos a cinzas, em algo que poderia ter sido confundido com a Bósnia.
Kevork Djansezian - 30.abr.12/France Presse |
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Rodney King fala durante o lançamento de seu livro, "The Riot Within - My Journey From Rebellion to Redemption", em LA |
Foi em parte graças a Rodney King que a revolta de fato parou. No terceiro dia ele fez uma súplica que ficaria famosa, em voz chorosa, diante de uma floresta de microfones: "Será que podemos todos nos entender?" Foi um desafio a dois séculos de relações raciais difíceis --algo que, na era de Obama, ainda é sentido--, que firmaram King como mais que apenas uma vítima.
Ele diz que até aquele momento, tinha se sentido humilhado. "O fato de alguém espancar você quase até a morte lhe tira tudo." King não pôde depor no julgamento dos policiais. "Foi como se os advogados quisessem toda a atenção." Ele conta que tudo isso mudou quando ele interveio na revolta. "Quando eu falei 'será que podemos nos entender', foi o início de minha redenção, ali mesmo. Toda aquela sensação de pavor saiu de meu estômago."
Filho de pai alcoólatra e violento, King bebeu demais desde jovem e já tinha sido preso por ameaçar um lojista com uma barra de ferro. Na noite do espancamento, ele estava dirigindo embriagado e em alta velocidade. Os policiais que o encurralaram, após uma perseguição dramática, disseram que ele resistiu à prisão e pareceu ser perigoso. Num segundo julgamento após as revoltas, dois policiais, Laurence Powell e Stacey Koon, foram condenados por infrações dos direitos civis.
Numa ação cível movida contra a cidade de Los Angeles, King recebeu indenização de US$ 3,8 milhões, algo que lhe ofereceu uma esperança de um recomeço. Ao invés disso, seu alcoolismo piorou, ele foi condenado por agressão à sua esposa e sofreu acidentes de carro repetidos, quebrando a pelve e passando a mancar.
Quando faz o relato desse catálogo sombrio de fatos, King, por um instante, adota tom travesso. "Ainda sinto medo quando vejo um uniforme, mas quando o policial me manda parar e vê que sou eu, fica com mais medo ainda. Ele treme desse jeito" --ele faz sua mão tremer. Ele sorri, e desta vez o sorriso chega até seus olhos.
Quando não está assistindo à televisão --os canais Discovery, History e de desenhos animados são seus prediletos--, King aparece nela. Ele apareceu numa luta de boxe entre celebridades e em dois programas de reabilitação de celebridades, a cada vez declarando vitória, apenas para depois recair no alcoolismo que destruiu seus relacionamentos e transformou sua casa em Rialto, nos arredores de LA, em quase um lixão.
Agora ele está declarando estar salvo em um livro, "The Riot Within: My Journey from Rebellion to Redemption" (a revolta interior: minha jornada da rebelião à redenção), redigido pelo ghost-writer Lawrence Spagnola e publicado para coincidir com o aniversário da revolta.
Os títulos dos últimos três capítulos são: "Um homem novo"; "Limpo e sóbrio", e "Viver, aprender, amar". Em outras palavras, Rodney King finalmente encontrou a paz. "Este livro é meu depoimento", diz ele. "Digo a mim mesmo que o tempo cura as chagas. É verdade."
APRENDER A PERDOAR
Ele situa seu caso, que desencadeou uma faxina no departamento de Polícia de Los Angeles, numa sucessão de marcos raciais históricos, desde a abolição da escravatura até o movimento dos direitos civis e a eleição de Obama. "Cada fato é construído com base nos outros. Ação e reação."
Enquanto beberica seu chá e reflete sobre os policiais que o espancaram, um final feliz parece acenar pela frente. "Tive que aprender a perdoar. Eu não conseguia dormir à noite. Desenvolvi úlceras. Precisei soltar tudo, deixar que Deus cuidasse disso. Ninguém quer ficar cheio de ódio em sua própria casa. Não quero passar minha vida toda com raiva. Sentir raiva tira muita energia de você."
Ele relaxa indo pescar, uma paixão que herdou de seu pai. Há até mesmo romance em sua vida. King está noivo de Cynthia Kelley, uma jurada do julgamento cível.
LA também se redimiu, até certo ponto. As tensões raciais diminuíram, a criminalidade, idem, a polícia foi reformada e existe uma classe média negra crescente. Seria agradável deixar as coisas assim, e pronto. Mas a cidade é ambivalente, cheia de luz e sombras, como o próprio Rodney King.
A pobreza e o desemprego ainda atormentam a subclasse negra. As disparidades vêm aumentando, e não diminuindo. Partes do centro-sul de LA ainda estão cobertas de escombros e mato deixados pela revolta.
O próprio Rodney King ainda é uma figura infeliz, aparentemente presa na armadilha de seu passado; em sua cabeça, tudo, seu nome, sua dependência do álcool, se confunde de modo inextricável. "Ainda sofro de dores de cabeça e pesadelos. Flashbacks. Acordo cheio de dores. Então é bom contar com alguma ajuda."
Ele se refere à bebida. Em seu livro, ele reconhece ser alcoólatra. Frente a frente, ele evita esse rótulo. "Cada um é diferente. Um alcoólatra não é igual a outro. Ainda bebo, mas hoje eu beberico. Não bebo muito, não fico embriagado. Bebo porque gosto do sabor."
King procura minimizar o vórtice autodestrutivo que lhe custou sua família, sua saúde e suas economias. "Tomei algumas decisões infantis." O álcool, ele diz, ansioso, terminando seu chá e impaciente para encerrar a conversa, não vai destruí-lo. "Eu já parei muitas vezes." A entrevista chega ao fim.
Uma última pergunta. O que ele gostaria de fazer no futuro? King faz uma pausa. "Construção, talvez. Seria bom construir algo sólido, sabe, alguma coisa que vai continuar ali por cem anos." Ele se levanta, aperta minha mão e vai embora, mancando em direção à tarde anuviada.
Tradução de CLARA ALLAIN.
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