Amigos fotógrafos buscavam a luz perfeita na Bahia dos anos 1970
Arembepe, 1975
Para Mario, criar era sinônimo de viver, ou melhor, viver e criar eram a mesma coisa. Mario não gostava de nadar, dar braçadas de um ponto a outro, mas mergulhava; nunca foi um atleta, mas a força de vontade vencia as barreiras, mergulhava nas águas e nas profundezas de si mesmo.
Havia nesse viver-mergulho um forte impulso de criação que ocupava tudo, uma disposição caótica, selvagem, algo improdutiva, mas solene, apaixonada e bruta à espera de uma lapidação, uma louca compulsão progressiva sem separação do banal de todos os dias. Isso quase o levou a um final trágico e prematuro cujo saldo foram as pernas gravemente fraturadas que o incomodaram pelo resto da vida.
Vicente Sampaio | ||
Mario Cravo Neto em Arembepe, em 1975 |
Ele vivia num contínuo desafio dos limites. No carro, estava sempre em alta velocidade, como se desafiasse e competisse com si mesmo. Andávamos muito juntos pelas estradas e ruas da Bahia e, pelo estado do carro, não teria sobrevivido se estivesse ao lado dele quando aconteceu o acidente.
Potencializávamos tudo isso com um arsenal de estimulantes, naturais e químicos, possíveis na época. Mario nunca se queixava de nada, a não ser de sua desorganização material. Faltava serenidade, que acabou chegando abruptamente com a lata de sua Brasília abraçando um poste de concreto a 120 por hora, a uma e meia da madrugada, numa curva fechada da orla, em 1975. Reflexos comprometidos pela mistura de anestésico odontológico, uísque e sono.
No hospital, no dia seguinte ao acidente, fiz uma foto dele na cama com as pernas engessadas e ligadas por uma barra de ferro como um enorme A. Ele queria que eu arranjasse uma escada para fotografá-lo de cima, com os braços abertos como um crucifixo. A ideia obviamente não vingou.
Houve dois Marios, um antes e outro depois desse acidente.
Vicente Sampaio | ||
Mario Cravo Neto em sua casa após acidente em 1975 em foto de Vicente Sampaio |
Uma semana antes, resolvemos sair direto de uma sessão de ampliações que havia durado toda a noite para uma excursão fotográfica a Arembepe, naqueles dias uma aldeia mítica de pescadores e hippies. Como desjejum, tomamos um chá verde, espumante, quase leitoso, da mais pura manga-rosa dos sertões alagoanos e um quarto de ácido cada um. Ainda paramos para uma batida de gengibre na barraca do velho Agostinho, um negro sorridente que vendia carvão na beira de uma avenida.
Saímos cedinho e pegamos o sol nascendo sobre o mar de Arembepe. Tenho uma lembrança cinematográfica dessa manhã, desse dia. Flutuávamos velozmente no tapete voador que era sua Brasília.
As imagens surgiam como águas em cataratas e o limite das 36 poses causava uma angustiazinha diante de tanta beleza. Não ouso imaginar como aquilo seria com a inesgotável metralhadora digital. Quando o sol se fazia mais alto, vinham as horas da luz vertical, dura e implacável.
Depois de um apimentado acarajé com caldo de cana, escolhemos uma sombra de coqueiro para o inevitável bode. Mario possuía aquela sabedoria baiana, do povo do passado, no meio de toda a loucura sabia que a hora mágica viria e sabia esperar, economizar as forças para jogar a rede no grande cardume de luz dourada da tarde, que no outono, na Bahia, é esplendorosa. Separam-me daquele instante 41 anos e consigo recordar os cheiros que havia no ar.
Com a luz caindo, as sutilezas mágicas surgindo, saíamos fotografando tudo, só parando para trocar filmes, enquanto o final da tarde chegava nos oferecendo generosamente pirações visuais.
Em casa, esgotados e com a alma lavada, um banho era imprescindível. Mario tinha uma enorme caixa d'água de concreto, com o registro colocado abaixo num cano de grande diâmetro, de onde vertia água com a força de uma marreta, para despertar e encarar mais uma noite em claro revelando filmes. De manhã era na praia que íamos dormir, até o sol incomodar.
Tive a sorte e o privilégio de conviver com ele naquela época doida, como amigo, colega e vizinho. Ele vai viver para sempre. Atotô!
VICENTE SAMPAIO, 68, é fotógrafo (vicentesampaio@gmail.com) e as imagens que fez do amigo Mario Cravo Neto estão em sua retrospectiva na galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, até 27/8.
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