O cineasta Mel Gibson e a busca pelas raízes da violência

MARTIM VASQUES DA CUNHA

RESUMO Escritor defende a inclusão do diretor e ator Mel Gibson no rol dos autores de cinema. Sustenta que, a exemplo de Alfred Hitchcock e Howard Hawks, ele contrabandeia reflexões profundas sobre um tema que lhe é caro (no caso, a raiz da violência) para filmes que, na superfície, assemelham-se a entretenimento pueril.

Os críticos de cinema nunca levaram a sério o trabalho de Mel Gibson como diretor.

Nos últimos tempos, até concedem que o ator dos "Mad Max" originais tem algum talento no comando da câmera. Não o fazem, contudo, sem um esgar, classificando-o logo depois com outros clichês mais cômodos: fundamentalista católico, politicamente incorreto ou obcecado por sangue.

Gibson é bem mais que um simples artesão de imagens, no entanto. Não seria exagero afirmar que ele preenche os requisitos para ser chamado de cineasta autoral.

Segundo o crítico francês André Bazin (1918-58), um "auteur" de filmes é um diretor que tem uma preocupação central, com a qual se digladia a cada novo trabalho. Pode até se valer da estrutura do sistema hollywoodiano, mas subverte as regras habituais, indo na contramão do gosto do público.

Nessa categoria figuram cineastas como Alfred Hitchcock (1899-1980), de "Um Corpo que Cai" (1958) e "Intriga Internacional" (1959) –suspenses que abordam problemas morais e metafísicos–, e Howard Hawks (1896-1977), que brincou com os gêneros do policial e do faroeste, respectivamente em "Scarface - A Vergonha de uma Nação" (1932) e "Onde Começa o Inferno" (1959), para mostrar o crepúsculo da América.

Quem acompanha a filmografia de Gibson nota que ele persegue um único tema. Trata-se de rastrear a origem da violência humana e de medir as consequências de praticá-la.

Um germe dessa obsessão desponta já em "O Homem Sem Face" (1993), seu primeiro longa-metragem como diretor. O filme conta a história da amizade entre o garoto Chuck (Nick Stahl) e o recluso Justin McLeod (o próprio Gibson), sobre o qual pesa uma séria acusação ligada a um episódio do passado.

Aqui, Gibson mostra como não há perdão possível em escala coletiva, apenas entre indivíduos.

Por causa da amizade com Chuck, McLeod é mais uma vez desterrado. Vê-se obrigado a fugir para não ser alvo de um linchamento moral ainda mais cruel do que aquele que já sofre.

É notável a sutileza com que o diretor retrata o que significa ser diferente em uma comunidade aparentemente pacífica.

O que incomoda em McLeod (e o faz ser desprezado por toda uma cidade) não é a suspeição de pedofilia, mas a pureza de seus sentimentos –uma pureza incompreendida, que precisa se retirar do escrutínio público, se recolher para não ser aniquilada por completo.

Já em "Coração Valente" (1995), sua segunda direção em cinema, Gibson parte para a violência explícita. De quebra, revela-se um astuto homem de negócios. Embora se trate de seu filme mais fraco, foi essa a produção que lhe garantiu carta branca em Hollywood.

No longa vencedor de cinco Oscars, ele empregou a tática que Martin Scorsese chamou de contrabando. Ou seja, convocou gêneros cinematográficos tradicionais (como o épico, o bíblico e o filme de guerra) e os subverteu, a fim de reafirmar a preocupação com a violência intrínseca ao homem.

Crédito: Divulgação Cena do filme "Coração Valente", dirigido e protagonizado por Mel Gibson
Cena do filme "Coração Valente", dirigido e protagonizado por Mel Gibson

É o que Hitchcock e Hawks haviam feito em suas respectivas obras, ao contrabandear temas graves em películas aparentemente despretensiosas.

Gibson usa "Coração Valente" para dizer algo que nossos cientistas políticos evitam afirmar: não é possível libertar um país sem recorrer à força. A violência, porém, condena a luta do personagem principal, William Wallace (Gibson), à incompletude –a exemplo do que ocorre com sua Escócia natal, ainda hoje dependente da Grã-Bretanha para definir sua permanência na União Europeia.

Pouco importa se o filme manteve-se fiel aos fatos ou se deve ser visto como pura ficção. A história de Wallace foi instrumental para que Gibson marcasse seu território em Hollywood. Protegido pelo novo status, conseguiu realizar o projeto mais arriscado de sua carreira atrás das câmeras.

CRUELDADE

"["A Paixão de Cristo"]":http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult682u103.shtml(2004) provocou polêmica à época de seu lançamento pelo retrato cru das agressões praticadas contra Jesus Cristo. Mas o propósito do diretor então era justamente encontrar a origem de toda violência, a raiz do problema do mal.

Ao representar a crucificação de Jesus em escala sanguinolenta crescente, ele confronta o espectador com uma série de perguntas perturbadoras. Se a vítima pode não ser Deus ele mesmo, por que trucidar-lhe o corpo daquela forma? O que há nele que justifique tamanha torpeza?

Num processo ousado de imersão histórica, Gibson obrigou seus atores a declamar as falas em aramaico. Ao mesmo tempo, nos conduz pelos meandros de uma meditação pessoal: o que faz um ser humano para justificar o assassinato de seu semelhante?

A resposta a esse questionamento está na dissecção de uma civilização inteira, levada a cabo pelo americano naturalizado australiano em seu filme seguinte, o estupendo "Apocalypto" (2006). Ao misturar drama histórico e thriller, ele explicita algo que antes apenas insinuava.

Para o diretor, a violência nunca vem de fora, do outro. Ela surge sempre dentro da civilização que a acolhe sem hesitar; irrompe em coletividades que decidem viver na ignorância de suas ações. Dessa inconsciência surgem rituais que normalizam a violência, transformam-na em prática cotidiana. É o que ocorre com os maias retratados em "Apocalypto".

Uma década depois, Mel Gibson aprofunda sua anatomia da violência em um filme de estrutura semelhante, o épico"Até o Último Homem" (2016), vencedor de dois Oscars um mês atrás.

Se na fita anterior ele fazia questão de citar Richard Donner (que o dirigiu em "Máquina Mortífera") e George Miller (criador do mundo distópico de "Mad Max"), agora o homenageado é o australiano Peter Weir, diretor de outro filme de guerra protagonizado por Gibson, o belíssimo "Gallipoli" (1982).

"Até o Último Homem" narra a história do médico de combate Desmond Doss, um cristão adventista que, apesar de não se recusar a ir às trincheiras da Segunda Guerra, não quer matar ninguém. Em vez de pegar em armas, pretende colocar suas habilidades à disposição de quem, no front, precisar de auxílio.

O conflito da consciência cristã de Doss com o dever militar é o reflexo de uma luta maior, desencadeada pela constatação de que toda a violência do homem surge de seu próprio coração. Daí decorre que cabe a ele encontrar maneiras de dominar a si mesmo.

Gibson traduz visualmente essa convicção numa impressionante cena de batalha. Ela atesta que, depois de o cineasta ter chegado a essa conclusão em seu íntimo (lembremos seu histórico errático fora dos sets, recheado de acusações de antissemitismo, agressão à esposa e ofensas a colegas), constitui hoje uma força da natureza em termos artísticos.

A acolhida entusiasmada do público a seus filmes mostra que estamos diante de um caso "sui generis", o de um cineasta autoral que impõe suas obsessões a um sistema que poderia sufocá-lo (justamente pelo imperativo da bilheteria polpuda). Gibson foi contra todas as expectativas e, por isso, tornou-se um herdeiro digno dos filmes "contrabandistas" de Hitchcock e Hawks.

MARTIM VASQUES DA CUNHA, 38, doutor em ética e filosofia pela USP, é escritor e jornalista.

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