Conheça a dupla que marcou o visual da contracultura no Brasil

Óscar Ramos e Luciano Figueiredo fizeram capas de discos de Caetano, Gil e Macalé

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Óscar Ramos e Luciano Figueiredo criaram a estética de algumas das principais obras da contracultura brasileira, entrelaçando poesia visual, música e artes plásticas em parcerias com Waly Salomão, Torquato Neto, Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Ivan Cardoso, entre outros artistas. Exposição no Rio com 40 obras (capas de disco, livros, cartazes) apresenta a contribuição inovadora da dupla para o design brasileiro, ao mesmo tempo em que Luciano ganha mostra em São Paulo com suas obras recentes.

"LUCIANO-ÓSCAR: concreção de ambiguidades: que lado da gilete você prefere? são os dois iguais? o corte é cego ou invisível? pra barbear ou castrar?".

Fotografia em preto e branco de Óscar Ramos e Luciano Figueiredo. Ambos usam calça, cinto com fivela e camisa estampada. Ao fundo, prédios e o corcovado.
Óscar Ramos (à esquerda) e Luciano Figueiredo - Ivan Cardoso/Acervo pessoal

Num texto de 1972, o artista plástico Hélio Oiticica celebrava a convergência de arte gráfica e vanguarda poética na parceria do amazonense Óscar Ramos com o cearense Luciano Figueiredo, a dupla responsável pelo design da revista Navilouca, editada pelos poetas Torquato Neto e Waly Salomão.

Entre 1971 e 1983, ao longo de um relacionamento criativo e amoroso, Óscar e Luciano criaram ambientes novos para a poesia visual e enlaçaram música e artes plásticas na contracultura. Como sugeria o nome, a Navilouca abarcava tudo quanto era maluquice, mas sua loucura tinha método.

A diagramação somava o aprendizado dos artistas com o concreto e o neoconcreto, a liberdade espacial dos poemas vanguardistas, a anarquia da imprensa underground e a atmosfera pop de Godard e do cinema marginal.

O trabalho da dupla pode ser visto agora em conjunto na exposição "Gráfica Poética –Luciano Figueiredo e Óscar Ramos", no centro cultural Futuros –Arte e Tecnologia, no Rio de Janeiro, com a curadoria de Aïcha Barat, doutora em literatura, e Fred Coelho, professor de Letras da PUC Rio.

"Foi uma relação de amizade e amor à primeira vista. Óscar era um artista plástico da cena do Rio. Eu, não. Estava engatinhando. Éramos uma dupla. Vivíamos e trabalhávamos juntos", conta Luciano Figueiredo, 75, em seu apartamento em Botafogo. Enquanto sua presença original no design brasileiro ganha mais reconhecimento, o artista radicado no Rio desde 1969 abre uma mostra individual com obras recentes na galeria Leme, em São Paulo.

A ideia da exposição de design gráfico cresceu com a morte de Óscar em 2019, aos 80, em Manaus. Durante quase um ano, Luciano organizou seu arquivo em cima de uma mesa na casa-ateliê. No Rio, a mostra tem 40 obras físicas. São capas de discos, livros, cartazes de cinema, a Navilouca, fotolitos, layouts originais, cromos.

A curadoria dividiu o acervo em três grupos: a produção para o meio editorial, a música e o cinema. "Estes três eixos mostram um aspecto muito singular que perpassa a obra de Óscar e Luciano: sua relação com a palavra escrita e a força desta enquanto imagem poética. Em uma época em que pouco se podia dizer publicamente, essa atenção da dupla à palavra poética no espaço público da cultura e da arte se torna um marco de suas criações gráficas", afirmam os curadores, por e-mail.

Há várias inovações na estética de Óscar e Luciano. A capa do livro "Me Segura Qu'eu Vou Dar um Troço", de Waly Salomão, fotografado por Ivan Cardoso entre os amigos Rúbia Mattos e José Simão, quebrou a solenidade da imagem de um poeta no mundo editorial.

Na obra de Waly, Luciano pescou as palavras-destaque "-Fa-Tal-" e "Violeto", desenvolvidas em faixas levadas ao cenário do show "A Todo Vapor" (ou Fa-Tal), de Gal Costa, no teatro Tereza Rachel. No mesmo palco, ele e Óscar ambientaram o show "Luiz Gonzaga Volta pra Curtir", o encontro do Rei do Baião com as plateias jovens.

Na década de 1970, os dois se opunham à ditadura militar, mas bocejavam com os jargões da esquerda tradicional. "Era forte a desolação para artistas e jovens intelectuais que aspiravam por utopias artísticas e políticas", diz Luciano. "Jovens que rejeitaram a militância política, qualquer que fosse, agrupavam-se em torno de ideais artísticos em certo avesso revolucionário, mas de forte consciência contra valores burgueses."

A primeira parceria de Luciano e Óscar veio com a capa do álbum "Barra 69: Caetano e Gil ao Vivo na Bahia" (1972), o adeus dos tropicalistas antes do exílio em Londres. Os designers assinaram ainda os visuais de "Fa-Tal - Gal a Todo Vapor" (1971), de Gal Costa, "Jards Macalé" (1972), "Araçá Azul" (1973), "Cores, Nomes" (1982) e "Uns" (1983), de Caetano Veloso, e "Luar" (1981), de Gilberto Gil. Com Maria Bethânia, "Álibi" (1978), "Talismã" (1980) e "Alteza" (1981).

"Não tomávamos como referência nenhum modelo de capa de disco estrangeiro de rock, dos Stones ou dos Beatles. Nós tínhamos o som. Estávamos próximos do trabalho poético e musical. Isso adquiria forma com as fotografias. O disco é um produto utilitário. Você precisava ter imagens que seduzissem o público pra comprar", afirma Luciano, que viveu com o companheiro em Londres, de 1972 a 1978.

Óscar criou sozinho a marca do álbum "Uns", de Caetano, hoje usada como logo da produtora de Paula Lavigne, mulher e empresária do compositor. Poucos sabem que esse trabalho sobreviveu a uma oferta de Andy Warhol, o gênio da pop art. Em 1983, Warhol compareceu ao jantar da modelo e estilista Marina Schiano em homenagem a Caetano, que estava em Nova York, com o jornalista Roberto D'Avila, para entrevistar o stone Mick Jagger.

Por admirar as canções de Caetano, a italiana Schiano reuniu em torno dele Marcos Vinicius, seu marido brasileiro, Mick e Bianca Jagger, a modelo americana Jerry Hall, Warhol e Elisa Moreira Salles. Caetano lembra o diálogo com Warhol.

"Você está gravando um disco novo?" "Sim, acabei de gravar um disco. Chama-se 'Uns'", respondeu o músico. "Posso fazer a capa?" "Andy, eu ficaria muito honrado em ter uma capa sua, mas esse trabalho já está pronto. Foi feito por um amigo artista visual, Óscar Ramos, no Brasil."

Warhol compreendeu a recusa, mas, irônico com a própria avidez por dinheiro, quis saber: "Quanto você acha que sua gravadora me pagaria por uma capa?".

Caetano viabilizou a impressão da Navilouca, a síntese das experiências de Óscar e Luciano, em 1974. Em suas páginas, aprofundou-se o vínculo cultural do Rio com os poetas concretos paulistas Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos. A revista acolheu Lygia Clark, Duda Machado, Chacal, Oiticica, Caetano e Rogério Duarte, o outro designer referencial da contracultura.

"Torquato tinha sido uma dissidência do tropicalismo, não sei por quais motivos. Ele volta da Europa entristecido e faz alianças com o Waly para criar novas situações para a arte", conta Luciano, ressaltando que a revista não pretendia se filiar à tropicália. "A Navilouca almejava expandir repertório de ideias que estabelecesse nova mentalidade para ideologias derrotadas e ajudasse a mudar o rumo ideológico da época."

As fotografias de Ivan Cardoso ganharam um lugar especial nas criações gráficas da dupla. "Sou parceiro desse trabalho. Dentro da revista tem 53 fotos minhas. Eu era o "enfant gaté" da Navilouca. Eu via o Óscar como artista plástico. Luciano sempre foi intelectualmente mais instruído. Luciano era a cabeça, e Óscar era as mãos", diz o cineasta.

O diretor Ivan Cardoso (a partir da esq.), o artista plástico Óscar Ramos e Monique Evans nas filmagens de "O Escorpião Escarlate"
O diretor Ivan Cardoso (a partir da esq.), o artista plástico Óscar Ramos e Monique Evans nas filmagens de "O Escorpião Escarlate" - Divulgação

"Eles tinham adoração por cinema e fizeram o cartaz de ‘Nosferato no Brasil’. Meu cinema não existiria sem Óscar como diretor de arte. Em ‘As Sete Vampiras’, ele fez uma planta carnívora elogiada pelo diretor americano Roger Corman como melhor do que a dele em ‘A Pequena Loja dos Horrores’ (1960)."

Cardoso fotografou as letras gigantes da performance "Alfa Alfavela Ville", de Waly com Óscar e Luciano, sob a inspiração de Godard, na praia de Copacabana. "Aquilo foi uma experiência radical entre Waly e nós", lembra Luciano.

"Não conhecíamos nada parecido e até o Hélio Oiticica, quando escreve sobre isso, fala contra o Robert Indiana, que fazia palavras gigantes nos Estados Unidos. Hélio dizia que nós éramos o oposto do letrismo do Indiana, daquele ‘Love’. Aquilo era meramente letra, ao passo que o nosso era uma proposta poética."

Em março de 1970, antes de conhecer Óscar, Luciano foi levado por Ivan Cardoso à casa de Oiticica, que colaborava então com Gal Costa. Na boate Sucata, o artista subverteu a caretice do cenário teatral e criou o conceito de "ambientação". Faixas de nylon transparentes afetavam a visão do tablado. Os espectadores, irritados, rasgaram a obra. Meses mais tarde, ele preparou o lance visual do show "Deixa Sangrar", de Gal, no Teatro Opinião.

"Hélio fez uma maquete muito bonita com blocos de madeira forrados de plástico vermelho. Porém, nesse meio tempo, ele ganhou a bolsa Guggenheim, teve que viajar para New York e convidou-me para executar a sua nova ambientação", diz Luciano.

Óscar só conheceria Oiticica em 1978, o ano do regresso do artista de Nova York. "Fizemos enquanto dupla o cenário para o filme ‘O Gigante da América’ [1980], de Julio Bressane, que tinha no roteiro uma ação que se passava nas dunas de Cabo Frio com o penetrável chamado ‘Tenda-Luz’, concebido pelo Hélio. Obra extraordinária toda feita de sarrafos de madeira, e por dentro e fora toda forrada de telas de nylon transparentes".

Em 1979, no hotel Méridien, em Copacabana, Óscar resolveu os impasses técnicos do penetrável "Rijanviera", com painéis de alumínio, telas de arame e um piso com água-corrente, a ser percorrido de pés descalços. "Neste título, Hélio inspirou-se numa frase de James Joyce no livro ‘Finnegans Wake’. Lá está: ‘A disincarnated spirit, called Sebastion, from the Rivera in Januero’", conta Luciano, curador e organizador do Projeto Hélio Oiticica entre 1981 e 1997.

"Luciano foi a pessoa que salvou a obra do Hélio. Havia uma linguagem comum aos dois. Embora tivesse muita gente envolvida —além de Luciano, Waly Salomão, Lygia Pape e Lygia Clark—, ele era a alma do projeto HO. Ele é muito culto e conseguiu levantar o passado do Hélio", diz Regina Boni, dona da galeria São Paulo, que acolheu históricas e badaladas exposições do artista nas décadas de 1980 e 1990.

"Em uma exposição do Hélio, trouxemos os críticos Guy Brett e Catherine David. Eu parei a galeria, ficamos seis meses trabalhando o Oiticica. Eu financiei. Luciano recuperou todas as obras. Trouxemos a Mangueira. Essas exposições fizeram do Hélio uma figura da crítica internacional. Mas tudo isso era um trabalho do Luciano", reconhece a galerista.

Em outubro de 2009, 12 anos depois da saída de Luciano do projeto, o acervo do artista, que estava sob a guarda da família Oiticica, sofreu um incêndio.

Em outra frente, Luciano impulsionou a recuperação crítica de Lygia Clark, nos anos 1990. "Dediquei-me muito ao estudo tanto da obra de um como do outro. Realizamos grandes exposições no Brasil e no exterior. Estabeleci, estudei, inventariei durante uns 15 anos a obra deles", diz. "A partir do trabalho voluntário que fizemos no Projeto Hélio Oiticica e para os arquivos de Lygia Clark, tornamos possível, juntamente com instituições estrangeiras, colocar a obra de ambos no mapa da arte internacional."

Aïcha Barat e Fred Coelho afirmam que, entre 1971 e 1973, "Óscar e Luciano produziram algumas das principais peças gráficas de sua geração no Brasil, criando um marco estético quando pensamos nas obras da contracultura brasileira e da invenção de uma linguagem que se tornaria referência para designers de diferentes épocas".

A mostra "Gráfica Poética" pretende "apresentar para o público o fato pouco conhecido de que eles são artistas cujo trabalho faz parte da memória visual de diversas gerações".

A segunda edição do livro "Folias Brejeiras" (1988), do humorista José Simão, traz uma dessas capas de efeito imprevisto, com uma cobra na boca feminina. "Éramos muito amigos no Rio. Tenho a maior admiração pelos trabalhos deles. Só eles na época podiam entender ‘Folias Brejeiras’. Tanto que puseram a cobra na capa, sensacional. Amei! Ter assinatura de Luciano e Óscar era um privilégio. A capa foi um trabalho de afeto", elogia Simão.

A trilha ao lado de Óscar virou um parâmetro histórico e pessoal de agitação para Luciano Figueiredo, que observa uma cidade menos trepidante. "O ambiente de trocas artísticas no Rio já foi mais rico em se tratando de colaborações grupais. O diálogo entre criadores acontece em menor escala. Não creio que haja um empobrecimento nas relações entre artistas. O momento atual é outro, e fenômenos artísticos não acontecem o tempo todo e a qualquer hora. O circuito de arte mudou no mundo inteiro. Porém, a expressão e a presença da subjetividade serão sempre irremovíveis, penso eu."

Na parede de Luciano, os planos de cor se cruzavam nos quadros expostos. As linhas de cores alteravam a dinâmica espacial da casa. "Minha inquietação nessa nova produção de peças é a de avançar na minha pesquisa com os relevos de cor. E creio que tal avanço se dá no uso planar dos valores próprios da pintura, o que chamei de Planoramas. Os elementos tridimensionais mesclam-se uns com os outros e penso que, como disse o crítico Paulo Venâncio Filho, trata-se de ‘construir reconstruindo’. Creio que sigo por uma posição pró-pintura."

Exposição Gráfica Poética –Luciano Figueiredo e Óscar Ramos

Exposição Planorama –Luciano Figueiredo

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