Descrição de chapéu França

Entenda por que André Bazin, que faria cem anos, foi crucial para o cinema

Crítico criou a revista Cahiers du Cinéma e foi essencial para a formação da nouvelle vague

Daniel Augusto

RESUMO Criador da revista Cahiers du Cinéma e nome essencial para a formação da nouvelle vague, André Bazin completaria cem anos no próximo dia 18. Autor argumenta que, além de sua influência seminal para a teoria e crítica cinematográfica, o francês foi inspiração para Deleuze e deixou contribuições para a filosofia.

 

"Impossível ignorá-lo", afirma Ismail Xavier no prefácio de "O que É o Cinema?", coletânea de ensaios de André Bazin (1918-1958) que ganhou nova edição pela Ubu Editora.

O francês, que completaria cem anos no próximo dia 18, é um dos mais influentes críticos de cinema da história, cuja obra ultrapassou sua área inicial de atuação como teórico.

A contribuição de Bazin ao cinema passa também por sua reconhecida generosidade: foi ele quem retirou o jovem François Truffaut —que viria a se consagrar como um dos maiores nomes do cinema francês— do reformatório e o incentivou a seguir carreira de crítico e cineasta.

Quando Bazin morreu, Truffaut escreveu que ele era "uma espécie de santo de boina de veludo, vivendo com uma pureza total num mundo que se purificava ao seu contato".

andré bazin
André Bazin (1918-1958), crítico francês e um dos fundadores da revista "Cahiers du Cinéma". - Reprodução

​Gilles Deleuze (1925-1995), por exemplo, considerava Bazin um filósofo, e Roland Barthes (1915-1980), outro grande pensador francês, tem ecos do teórico de cinema em um de seus livros mais famosos, "A Câmara Clara" (1980).

Apesar da morte precoce, Bazin foi um escritor prolífico, criador de cineclubes, organizador de festivais, colaborador de jornais, palestrante frequente e fundador daquela que continua sendo a maior revista de cinema do mundo, a Cahiers du Cinéma.

No seu tempo, o cinema ainda não havia sido elevado à categoria de arte séria, e ele foi crucial para elevar a crítica ao status que tem hoje: "Bazin fala dos filmes como se comentasse um romance de Dostoiévski", escreveu seu biógrafo Dudley Andrew.

A obra teórica do francês está distribuída em diversos ensaios; ele não chegou a escrever um tratado que sistematizasse seus conceitos e teorias. Uma das possíveis portas de entrada para seu pensamento é o ensaio "A evolução da linguagem cinematográfica" (síntese de três artigos anteriores escritos entre 1950 e 1955), que poderia ser dado como matéria obrigatória nas escolas, dado o poder da indústria cultural hoje.

Nesse texto, escrito com simplicidade apenas aparente, Bazin divide o cinema entre clássico e moderno, mas não por um critério cronológico de produção, mas sim pelas características e escolhas de linguagem, que sistematiza por meio de uma "gramática do cinema".

Segundo ele, em linhas gerais, os filmes de linguagem clássica são aqueles agradáveis ao público, por serem construídos dentro de gêneros com regras bem estabelecidas —a comédia, o musical, o policial— e possuírem duas características principais: a decupagem clássica e a montagem invisível.

IMAGEM X REALIDADE

A decupagem de um filme é a sua divisão em planos, ou seja, todas as tomadas de câmera que compõem as cenas e, em última análise, o filme.

Uma das características do que Bazin identifica como decupagem clássica é uma organização dos planos que respeita a verossimilhança do espaço. Ou seja, tanto num plano geral —uma imagem feita mais à distância, incluindo vários elementos na tela— quanto num close, o espectador sempre sabe qual a localização do personagem.

Na decupagem fora desse cânone, o espectador não tem, de cara, todos os elementos necessários para "se localizar". É o que ocorre, por exemplo, em "O Tempo Redescoberto" (1999), de Raúl Ruiz, no qual há cenas de diálogo contínuo entre dois personagens enquanto a distância entre eles muda a cada corte.

Outra característica da forma clássica é definir uma sequência de planos para efeitos de dramaturgia. Por exemplo: inserir um plano geral de um personagem na amplitude do deserto para mostrar a solidão a que chegou após ações e situações trágicas.

Outro efeito almejado é o psicológico: em certo momento da narrativa, opta-se por um plano em close para sublinhar as lágrimas de um personagem. Caso se optasse por um plano geral, esse detalhe se perderia no todo, e o impacto da imagem seria menos eficaz.

Se a decupagem é a escolha dos planos que irão compor o filme, a montagem é a sequência e forma na qual as imagens são organizadas.

A montagem invisível, definida por Bazin, é a combinação de planos feita de modo que o espectador não registre o corte. Isto é, o deslocamento da câmera (e, logo, do ponto de vista) não é notado já que essas mudanças (de longe para perto e vice-versa, por exemplo) são justificados pela geografia da ação ou pela transferência do interesse dramático.

Pegue-se o exemplo de como um diálogo pode ser registrado num filme. Não causa estranhamento que a câmera oscile num vai-e-vem entre as pessoas que conversam, se direcionando geralmente àquela que fala. A transferência do interesse dramático de uma pessoa para outra torna "invisível" a mudança da posição da câmera.

Um filme recente como "A Forma da Água" (2017), de Guillermo del Toro, vencedor do Oscar de melhor filme, cabe dentro dessa gramática clássica: a decupagem respeita a verossimilhança do espaço e é elaborada com intenção de obter efeitos dramáticos e psicológicos, e a montagem é invisível.

Para Bazin, os diretores que seguem esses princípios "acreditam na imagem". Um segundo grupo surge a partir dos anos 40: cineastas que, na sua visão, "acreditam na realidade" e colocam em xeque a linguagem clássica por meio de dois recursos: a profundidade de campo e o plano-sequência.

O primeiro significa a captação de imagens com uma área nítida maior entre objetos próximos e distantes, de modo a ampliar a quantidade de informação visual entregue ao espectador.

Em "Cidadão Kane" (1941), de Orson Welles —uma verdadeira aula de profundidade de campo—, vemos um garoto no fundo da imagem e, no primeiro plano, discute-se o seu destino. Esse tipo de enquadramento, que reforça a continuidade espaço-temporal, cria uma relação dramática mais intensa, com todos os personagens num mesmo quadro, ao mesmo tempo.

O segundo instrumento é a opção de contar algo não por meio de vários planos, separados por cortes, mas com apenas um plano longo, durante o qual vários eventos se desenrolam diante dos olhos do espectador.

"Festim Diabólico" (1948), de Alfred Hitchcock, tem uma história que se desenrola entre 19h30 e 21h15, e os únicos cortes do filme foram feitos por força da duração dos rolos de filme. Esse tipo de continuidade cria um novo tipo de suspense, sem dilatações do tempo, um pouco como se o espectador estivesse presente no local da história.

Hoje, o plano-sequência e a profundidade de campo estão presentes mesmo no cinema comercial, em filmes hollywoodianos como "Gravidade" (2013), de Alfonso Cuarón, "Birdman" (2014) e "O Regresso" (2015), ambos de Alejandro González Iñarritu.

FILOSOFIA

A separação entre diretores da imagem e da realidade, assim como a distinção entre cinema clássico e moderno, pode parecer um debate de interesse restrito à teoria e à crítica cinematográfica.

Porém, essa sensação se desfaz quando percebemos que a sistematização de Bazin mostra que a opção pela linguagem clássica ou moderna é também a eleição de um modo de conhecimento.

Para cunhar sua ideia de real, Bazin partiu da obra do filósofo Henri Bergson (1859-1941), para quem o conhecimento vulgar recolhe "fotografias" e se retém aos pontos de uma trajetória, enquanto que o real é caracterizado pela transição, pelo processo. O conhecimento verdadeiro estaria atento ao tempo: ao que muda e não para de mudar.

O realismo de Bazin pode ser interpretado como uma forma de valorizar o fluxo: de um lado, teríamos o cinema clássico (equivalente, de certo modo, ao conhecimento vulgar); de outro, o moderno (mais próximo, à sua maneira, da mobilidade e mudança do real).

A Bazin pode-se creditar também a antecipação de muitas das noções de Deleuze, cujos trabalhos filosóficos sobre o cinema causaram um "impacto positivamente corrosivo" (como disse Robert Stam).

Deleuze cunhou o conceito de "imagem-movimento": uma percepção do personagem se encadeia numa ação —com subordinação do tempo (tal como Bergson o descreve) ao movimento.

Exemplo: no filme "Os Caçadores da Arca Perdida" (1981), há uma cena em que Indiana Jones se vê ameaçado, saca seu revólver e atira no antagonista. Visto pela ótica de Deleuze, essa é uma operação característica do cinema clássico: algo sensório (o herói percebe a ameaça) e motor (o herói atira no que o ameaçava).

Mas Deleuze definiu também a "imagem-tempo", na qual o tempo não se subordina ao movimento. Ao contrário: há um rompimento entre os liames do corpo com aquilo que lhe aparece —algo característico do cinema moderno que Bazin já tinha identificado no neorrealismo italiano ("são fatos que não se engatam um nos outros como os elos de uma cadeia").

Em "Melancolia" (2011), de Lars von Trier, por exemplo, nada parece fazer sentido para a protagonista na primeira metade do filme. O próprio prólogo do longa-metragem, com seus movimentos lentíssimos, quase estáticos, sinalizam uma subordinação do movimento ao tempo.

Esse é um traço do cinema moderno: mostrar a impossibilidade de um sujeito sensório-motor, que vive a ilusão de agir e reagir ao mundo. Ao contrário, ele oferece personagens que —em crise diante do impossível de ser vivido— entram em situações óticas e sonoras puras, nas quais o tempo bergsoniano emerge.

As contribuições conceituais de Bazin foram essenciais para formar o cinema como o conhecemos no século 21. Uma linguagem que permite acontecimentos sem ordem causal estrita, personagens que perdem sua motivação e mesmo uma realidade elíptica ou oscilante.

Do cinema clássico ao moderno, do pensamento de Bergson à metafísica deleuziana, e a própria tradição que vê o cinema como uma forma de pensamento —não é só Truffaut que deve muito ao "santo de boina de veludo".


Daniel Augusto, 45, é diretor de cinema, mestre em literatura brasileira pela USP e doutorando na mesma instituição.

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