Descrição de chapéu Perspectivas

Manipulação digital afeta credibilidade da fotografia e diminui seu impacto

Ceticismo ajuda a explicar por que têm surgido poucas imagens emblemáticas

Fred Ritchin

Paradoxalmente, embora vivamos em uma "Era da Imagem", com bilhões de fotos publicadas na internet a cada dia e trilhões disponíveis online, não estamos certos do que elas significam, se nos ajudam ou se é possível acreditar nelas.

Aquele selfie é um autorretrato ou uma forma de "branding" para melhorar, na internet, o status da pessoa retratada? Estamos diante da fotografia de um acontecimento ou de uma imagem fabricada de modo a simular uma fotografia?

O jornalismo, que depende de credibilidade, tem sido tanto enriquecido quanto ferido pela revolução digital. Embora contribuições de jornalistas cidadãos tenham sido enormes, e apesar de a fotografia sempre ter sido uma mídia subjetiva e interpretativa, a capacidade de alterar elementos visuais de forma imperceptível (com softwares como o Photoshop) reforçou o ceticismo do público quanto a imagens jornalísticas.

(E a produção generalizada de vídeos sintéticos de eventos que nunca aconteceram vai agravar este ceticismo de forma significativa.)

Os veículos de mídia têm feito pouco para explicar aos leitores o que é permissível de se modificar numa fotografia e esclarecer se ele está diante de um evento encenado para a câmera ou algo real e espontâneo.

Tampouco estabelecemos o vocabulário adequado para discutir o assunto —por exemplo, qual é a diferença entre fotografia de ficção e de não ficção? Em palavras, sabemos qual é a diferença: vá a qualquer livraria e haverá diferentes seções para cada uma delas. Mas, em fotografia, a maioria das pessoas teria dificuldade para definir as diferenças.

Quando Osama bin Laden foi morto por forças norte-americanas em 2011, nenhuma foto do evento foi divulgada. Barack Obama declarou: "É importante assegurar que fotos explícitas de alguém que levou um tiro na cabeça não circulem como incitação a mais violência —ou como ferramenta de propaganda".

O então presidente acrescentou: "Não há dúvida entre os membros da Al Qaeda de que ele está morto. Por isso não acreditamos que uma foto vá fazer diferença. Haverá quem negue o ocorrido, mas o fato é que ninguém mais verá Osama bin Laden caminhando por este mundo".

Porém, se já não acreditamos que "uma foto vá fazer diferença", então por que tirar fotos?

Esse ceticismo quanto à utilidade da fotografia como referência social também ajuda a explicar por que, nos últimos anos, surgiram tão poucas fotos emblemáticas, que colocassem foco em questões relevantes como mudança climática e imigração —exceto pelo retrato de Alan Kurdi, o refugiado sírio de três anos afogado em 2015. Hoje, inclusive, pouco se fala de fotos icônicas e muito de imagens virais, que simplesmente se espalham como uma epidemia.

Parte do problema está em nós e em nossas expectativas. Certa vez, Paul Stookey, da banda Peter, Paul and Mary, fez uma reflexão no palco: após o fim da revista Life (vida), a próxima publicação popular dos EUA foi a People (pessoas), que foi, então, seguida pelo periódico Us (nós), que por sua vez levou à revista Self (si mesmo), que tirou do foco qualquer outra pessoa ou coisa.

Usando o ego como trampolim, a sociedade de consumo privilegia o desejo por bens materiais como um direito primordial do indivíduo, que desloca, inclusive, suas obrigações de cidadania. Por sua vez, as próprias posses se tornaram secundárias à marca que as define, de modo que o que é comprado é um simulacro.

Assim é com as selfies, que pouco têm a ver com autorretrato ou autoconhecimento, mas parecem essenciais para fabricar uma imagem que se torna moeda para comprar status online. Da mesma forma, somos levados a olhar para paisagens idílicas em vez da destruição ambiental que indica nossos desafios urgentes de sobrevivência.

Essa mudança põe em questão o funcionamento do jornalismo, mas também de instituições democráticas que precisam que cidadãos sejam informados de maneira confiável.

Curiosamente, a resposta de muitos dos fotógrafos documentais mais reflexivos e preocupados com o bem-estar social é retirar o caráter de reportagem como sustentáculo da credibilidade de sua abordagem. Em vez disso, eles tendem a trabalhar de forma mais conceitual, explorando os sistemas subjacentes em jogo, e não apenas seus sintomas.

Um dos primeiros exemplos disso é o livro "Vietnam Inc." (1971), de Philip Jones Griffiths, no qual a guerra é retratada como algo comparável a uma operação de mercado.

Essas estratégias permitem uma abordagem proativa, que tenta encontrar maneiras de minimizar ou até prevenir desastres, ao invés de esperar que ocorram para fotografar o espetáculo que pode se seguir.

Isso se torna um traço de um emergente renascimento fotográfico, similar ao que ocorreu com a pintura no século 19, quando a invenção da fotografia libertou os pintores da concentração em representação direta e os encorajou a transformar sua abordagem —resultando no impressionismo, cubismo, surrealismo etc.

Em uma verdadeira revolução midiática, não podemos, como arguiu o canadense Marshall McLuhan no século passado, contentar-nos em viajar a 150 km/h olhando no retrovisor. Porque, se o fizermos, nós provavelmente teremos um acidente. 


Fred Ritchin, reitor emérito do Centro Internacional de Fotografia (Nova York), foi editor de imagem da New York Times Magazine de 1978 a 82. Esteve no Rio de Janeiro a convite do Rio2C, encontro de criatividade e inovação realizado de 3 a 8 de abril.

Tradução de Paulo Migliacci.

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