Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma historiadora

Autora revisita polêmica sobre racismo do escritor, cuja obra entra em domínio público

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Lucilene Reginaldo

[RESUMO] Historiadora revisita a polêmica sobre o racismo nos livros infantis de Monteiro Lobato, a partir de leitura de texto do colunista Jorge Coli.

 

No último domingo (3/2), Jorge Coli publicou em sua coluna na Ilustríssima o texto intitulado “Viva Lobato!”. O artigo festeja a boa notícia de que as obras de Monteiro Lobato estão agora em domínio público.

Coli retoma um debate que acompanhei com interesse em 2010, provocado pela denúncia de conteúdo racista do livro “Caçadas de Pedrinho”, protocolada pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no Conselho Nacional de Educação.

Da denúncia, resultou um parecer técnico, solicitado pelo próprio MEC, que recomendou a permanência do livro no Programa Nacional Biblioteca da Escola com a seguinte advertência: “A obra ‘Caçadas de Pedrinho’ só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”.

A recomendação deu publicidade ao assunto e levou a polêmica ao grande público. Escritores de prestígio como Ziraldo e Ana Maria Gonçalves se manifestaram publicamente. O primeiro defendendo a importância da obra de Lobato para sua e outras gerações de brasileiros; a segunda explicitando o conteúdo racista e alertando para seus efeitos danosos nas crianças negras.

Ao ler o texto de Coli, fiquei impactada com uma afirmação: “Só quem não leu ou não compreendeu os livros infantis de Lobato pode julgá-los racistas”. Respeitosamente, quero discordar do meu colega. Minha argumentação seguirá dois fios condutores. Primeiro, quero mencionar uma experiência pessoal, algo que não é do meu feitio, mas creio que é apropriado para a ocasião. Depois, falar da perspectiva de alguém que tem estudado a história do racismo.

Em 2010, instigada pela polêmica, resolvi ler “Caçadas de Pedrinho” para meu filho, com seis anos na época. A coleção de clássicos de Monteiro Lobato estava na sua pequena biblioteca, e já não me recordo se foi presente ou aquisição. Eu mesma tinha lido Lobato na infância, numa daquelas edições que os vendedores de enciclopédias ofereciam de porta em porta nos bairros populares.

Sinceramente, não me lembro do impacto de Lobato na leitora infantil. Recordo-me bem da série televisiva, uma versão já adaptada e depurada da obra. Juntei a fome com a vontade de comer. Ler Lobato para meu filho, além do prazer materno cultivado ao longo dos anos, seria também uma oportunidade de “checar” e me posicionar no debate.

Confesso que foi uma experiência inusitada para uma mãe historiadora. Não encasquetei apenas com a frase “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”. 

Tia Nastácia era sempre a “bola da vez”: ingênua, simplória, medrosa, serviçal e alvo de racismo e discriminações explícitas. Tudo em perfeita consonância com a hierarquia racial: na base da pirâmide, a mulher negra.

Para a onça que atacava os moradores do sítio, Tia Nastácia é “furrundu”, um doce feito com mamão verde, rapadura, cravo e canela, portanto preto. No calor da guerra com as onças, Emília, a bonequinha esperta e independente, comenta: “Não vai escapar ninguém —nem Tia Nastácia, que tem a carne preta”.

O que mais me incomodava era que Tia Nastácia era adjetivada como negra, preta, o tempo todo. Só ela tinha cor, apenas nela a cor se colava como uma marca indelével, mesmo que fosse “a boa negra”.

narizinho e tia nastácia
Rosana Garcia e Jacira Sampaio, que interpretaram Narizinho e Tia Nastácia na versão de 1979 do "Sítio do Picapau Amarelo". - Nelson Di Rago/Divulgação/TV Globo

Negra é vocativo, como bem interpreta Ana Maria Gonçalves. As expressões bradejavam contra tudo que nossa família buscava ensinar a um menino negro de seis anos. Por isso, confesso, omiti, cortei palavras, adaptei e editei alguns trechos. Logo eu, defensora do pensamento livre!

Não pretendo discorrer sobre o entusiasmo de Lobato com as ideias eugenistas para demonstrar seu racismo —que está, sim, expresso em sua obra ficcional. Muitos intelectuais já o fizeram com muito mais propriedade e competência.

Entre 1918 e 1946, Lobato manteve correspondência constante com Renato Kehl, diretor associado da Sociedade Eugênica de São Paulo. Como ciência, a eugenia reconhecia a existência de qualidades raciais inatas e hierarquizadas; como movimento social, formulou toda uma agenda de intervenções no âmbito da higiene, dos comportamentos, da saúde mental e da educação. Seu objetivo era “melhorar” a composição hereditária de uma sociedade, encorajando a reprodução dos grupos aptos, desencorajando ou prevenindo a reprodução dos inaptos.

A adesão eufórica de Lobato aos “nobres ideais eugênicos”, palavras do autor na primeira missiva enviada a Renato Kehl, elucida o desenraizamento familiar de Tia Nastácia e Tio Barnabé. Nenhum dos dois tem pais, irmãos ou filhos; seus únicos vínculos afetivos são com os personagens do Sítio, na condição de serviçais.

O bom negro e a boa negra são estéreis. A desejada eliminação do elemento negro —visando o avanço da civilização e o bem público, é claro— e a defesa da subalternidade das gentes de cor foram explicitadas por Lobato sem qualquer pudor.

Em 1928, quando era adido comercial do Brasil em Washington, Monteiro Lobato enviou uma carta ao amigo Antonio Neiva explicando por que não escrevia crônicas sobre suas impressões e vivência nos Estados Unidos. Após comentários pouco delicados sobre a imprensa e os leitores brasileiros —a primeira lhe parecia “um circo mambembe”, e seu público “um bando de moleques feeble-minded” (estúpidos, em bom português)—, Lobato lamenta nossa triste condição racial.

“País de mestiços, onde o branco não tem força para organizar uma Klux Klan, é país perdido para os altos destinos. (...). Um dia se fará justiça ao Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca —mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor, porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.

O manuscrito original desta carta, citada na dissertação “Eis o mundo encantado que Monteiro Lobato criou: raça, eugenia e nação”, de Paula Habib, está no acervo do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio. Diante desses fatos, e mesmo reconhecendo que “a arte é sempre maior que o artista”, é difícil cindir autor e obra.

Lobato era um homem do seu tempo. Usando uma expressão que já virou lugar-comum, surfava na onda das teorias científicas e do pensamento social dominantes na primeira metade do século 20. Não era o único intelectual e literato racista e eugenista, muito pelo contrário. Poderia aqui apresentar uma lista de entusiastas do racismo científico. Alguns dos quais leio e releio por dever de ofício e particular interesse por suas contribuições intelectuais.

O que difere, porém, Monteiro Lobato da maioria destes homens de letras, entre tantas variáveis, é o público leitor privilegiado, os objetivos da leitura. Para não me alongar demais, mas também por certo pudor acadêmico e disciplinar, não entrarei no debate sobre o homem e sua obra de inquestionável valor literário, sofisticação, além de outros atributos críticos. Isso para mim é obvio.

Lobato é mais do que uma fonte para estudiosos do eugenismo, do pensamento social e da história da literatura no Brasil. Assim, não vejo por que a recomendação de 2010 não possa ser levada a sério na introdução de seus livros para o público infantil.

A questão não é censurar Lobato, não se trata de forma alguma de banir seus escritos por racismo. Uma boa solução é recorrer às edições críticas, que não é prática desconhecida entre os editores. Isso aconteceu com “Tintim no Congo”, a popular revista em quadrinhos produzida no bojo do colonialismo belga, portanto, plasmada pela explicitação de estereótipos e preconceitos contra os africanos. Após vários debates públicos em países da Europa, esta obra tem sido publicada criticamente.

No Brasil, a Companhia das Letras, que tem os direitos de publicação de Tintim, também apresenta uma nota crítica situando o autor, a obra e a história do colonialismo belga.

Hoje, aos 14 anos, meu filho —assim como muitos meninos e meninas negros, ou não, da mesma idade— pode ler Monteiro Lobato e outros “homens de seu tempo”, sem minha constrangida edição, talvez até se posicionar diante do autor e da obra. Com ajuda de uma nota crítica, talvez seja mais fácil até para os mais novos. Aos seis anos, não havia autor nem obra, apenas personagens com os quais ele vibrava, se identificava ou repelia.

Não quero crer que seja necessário ter um filho negro para ser sensível aos malefícios do racismo na formação de uma criança. E acho também que estamos, ou deveríamos estar, longe de querer que um garoto (ou garota) negro aprenda com Nastácia qual é o seu lugar no mundo. 

Evidentemente, autor e obra são complexos, contraditórios, ambíguos, assim como o leitor pode subverter e se apropriar do texto a seu modo. “Negro também é gente, sinhá”, afirma Nastácia. Esta é a frase que encerra “Caçadas de Pedrinho”. A personagem é assertiva —pelo menos aos olhos desta leitora, talvez apesar do autor. Mas nem como mãe, nem como estudiosa do racismo, posso concordar que, depois de afirmar minha humanidade, tenha que reverenciar uma “sinhá”! 


Lucilene Reginaldo é professora do Departamento de História da Unicamp.

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