Em romances e livros de receitas, culinária é parte essencial da literatura

Seleção de obras sobre comida no Brasil tem crescido, argumenta autor

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Alexandre Staut

[RESUMO] A culinária é parte integrante da história da literatura, seja pelos livros especializados, seja pelas cenas de romances clássicos. Autor lista exemplares marcantes e diz que a seleção de obras sobre comida no Brasil tem crescido.

 

Há 4.500 anos, egípcios acreditavam que os defuntos deviam ser enviados ao mundo dos mortos munidos de tudo o que fosse necessário à sua nova vida, incluindo os prazeres deste planeta. Nas tumbas, bebida e comida tinham espaço reservado —às vezes, conforme a riqueza do morto, havia até mesas montadas.

Mais tarde, por volta de 1550 a.C., a realeza egípcia passou a ser enterrada sem os órgãos internos: acreditava-se que, assim, não se sentiria fome nem sede. Estômagos e intestinos passaram a ser colocados em jarros funerários ornados com cabeças de animais, onde eram guardados por espíritos mágicos.

Para os plebeus —enterrados com seus órgãos, poucos metros abaixo da terra—, continuaram sendo deixadas tigelas com comida e bebida.

Conheci esses fatos em "Chaque Jour Est un Festin" (cada dia é um banquete), de Kay e James Salter, que encontrei num sebo na Boulevard Poissonière em visita recente a Paris. Nele li também que os peixes-chatos —aqueles fininhos, como os linguados e os turbots—, no decorrer da vida, acabam tendo um olho transferido para o outro lado do corpo, o que faz com que o animal passe a nadar na diagonal.

Nesse livro também consta que houve pelo menos um cozinheiro célebre na Idade Média francesa, Guillaume Tirel, que, por volta de 1340, encantou as papilas gustativas de Joana de Évreux, futura rainha da França, com cegonhas, garças e cisnes assados. Naquela época, era comum levar essas aves para o prato —muitas iam às mesas reais com penas coloridas de decoração.

Dias depois, passeando pelo sebo londrino Any Amount of Books, aberto na mítica Charing Cross Road há mais de dois séculos, deparei-me com uma estante de livros raros de gastronomia. Dentre eles, "Elinor Fettiplace's Receipt Book" (o livro de receitas de Elinor Fettiplace), escrito em 1604 por vários autores de uma única família e considerado a bíblia da área em língua inglesa.

O livro traz receitas de xarope de rosas e de tabaco, ambos para tosse, entre outros procedimentos caseiros para gripes, erupções na pele e intestino preso. Estava à venda por 1.200 libras (equivalente a 5.760 reais) —o original, escrito a mão, não o editado industrialmente na década de 1980, que pode ser encontrado na Amazon por pouco mais de 30 dólares (ou 105 reais). Abri-o com cuidado, encostei o nariz para sentir o cheiro de baunilha das páginas amareladas e devolvi à prateleira.

Desde o ano 2000 coleciono livros de gastronomia. O primeiro que caiu em minhas mãos foi uma compilação de receitas do chef pernambucano César Santos, que faz um apanhado da comida de seu estado, do sertão à beira do mar.

Em seguida li um livro de crônicas culinárias do apresentador de TV americano Anthony Bourdain, que me levou a Michael Pollan, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e autor de "Cozinhar: Uma História Natural da Transformação" (Intrínseca, 2014) —em que relaciona o ato de comer aos quatro elementos: fogo, água, ar e terra.

Uma citação num livro de Pollan e cheguei à também norte-americana M.F.K. Fisher e seu incrível "Como Cozinhar um Lobo" (Companhia das Letras, 1998), em que ensina a classe média dos EUA a fazer pratos em tempos de escassez. O livro, lançado em 1942, durante a Segunda Guerra, encantou o poeta anglo-americano W.H. Auden, a ponto de dizer que Fisher era a melhor escritora de sua época. Talvez exagero de um escritor bom de garfo.

E falando em guerra, há ainda "O Livro de Cozinha de Alice B. Toklas" (Companhia das Letras, 1996), da companheira de Gertrude Stein. Lançado em 1954, traz anotações sobre o apetite de Picasso, Matisse, Hemingway, Zelda e Scott Fitzgerald, entre outras estrelas que a dupla recebia em sua casa em Paris no pós-guerra.

Deste livro ao fabuloso "Grande Dicionário de Culinária" (Zahar, 2006), de Alexandre Dumas, foi um pulo. O conhecido autor de "Os Três Mosqueteiros" e "O Conde de Monte Cristo", logo que fez 60 anos, recolheu-se num chalé para escrever sobre o que mais gostava: gastronomia.

Consta que foi a fase mais feliz da vida de Dumas, a ponto de ter dito que pretendia entrar para a história da literatura não com suas dezenas de clássicos, mas pelo livro de culinária. Uma cozinheira profissional acompanhou o escritor no período; além de ele escrever seu dicionário amoroso da alimentação, provou todas as receitas que mais amava, morrendo poucos anos depois, com a pança cheia e feliz.

Em minha pesquisa sobre gastronomia em livros, percebi que o tema tem papel fundamental em alguns romances e epopeias.

O primeiro a ser lembrado é "Ilíada", obra atribuída a Homero. A cena em que heróis derrotados se alimentam de mel para se regenerarem é uma das passagens mais conhecidas do clássico grego, que data do século 8º a.C.

"Gargântua e Pantagruel", lançado em 1532 por François Rabelais, é um relato divertido do bon vivant de apetite descomunal —cujo nome é o mesmo de um demônio do folclore bretão que tem como atividade preferida jogar sal na boca de bêbados adormecidos pelas ruas para lhes causar sede e fazer com que bebam ainda mais.

Em "O Livro de Pantagruel" (1945), a portuguesa Bertha Rosa-Limpo revisita a saga pantagruélica, adaptando receitas ao gosto de Portugal, numa obra que se tornou um clássico de além-mar, com mais de 75 edições.

Tolstói, em "Anna Karenina", escrito de 1873 a 1877, centrou a trama no caso extraconjugal de uma aristocrata czarista que passa diversas cenas sentada à mesa com muito caviar, ostras e champagne.

Cada um desses livros, conforme foram aparecendo, davam-me a sensação de que o apetite aumenta e, com ele, também o desejo de escrever meus próprios livros. "Paris-Brest", minha primeira incursão pelo mundo dos sabores, nasceu assim.

No Brasil, vivemos um momento em que editoras passaram a apresentar em seus catálogos uma ampla seleção de obras sobre o tema, sejam títulos de receitas —como os Rita Lobo, da apresentadora de televisão, ou das chefs Carla Pernambuco e Ana Luiza Trajano—, sejam mais teóricos, a exemplo do livro "Farinha, Feijão e Carne-Seca: Um Tripé Culinário no Brasil Colonial" (Senac São Paulo, 2005), de Paula Pinto e Silva.

Entre autores de ficção recentes, muitas ainda trazem comida e gastronomia em suas páginas. O romance "Um Amor Anarquista" (Record, 2005), de Miguel Sanches Neto, por exemplo, tem sua trama atrelada a sacos de arroz e feijão e outros pratos do nosso dia a dia citados por personagens que lutam por sobrevivência numa comunidade onde o amor é livre, e a comida, escassa.

Que fique claro: quando falo de pesquisas gastronômicas, não descarto a falta de alimento e a fome, embora acredite que todo mundo mereça mesa farta, tanto na literatura quanto na vida real. Nascemos todos para comer e beber bem, e é bom saber que, pelo menos no cardápio editorial nacional, a fartura tem aumentado. 


Alexandre Staut, 45, escritor, é autor de “Paris-Brest” (Companhia Editora Nacional, 2016) e do inédito “Banquete com Índios e Outras Histórias da Gastronomia Brasileira”.

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