Jac Leirner aborda uso de drogas em exposição e critica ativismo nas artes

Artista mostra obras criadas sob efeito de cocaína e diz que galerias estão 'abrindo as pernas' para o mercado

Marcos Augusto Gonçalves

[RESUMO] Jac Leirner, que mostra trabalhos criados durante noites de consumo de cocaína em 2010, afirma que as instituições artísticas ‘estão abrindo seus espaços e suas pernas para o mercado’ e critica o ativismo na arte, que considera insuportável.

 

Uma pedra de cocaína vai se desgastando e assumindo a forma de cabeças, rodas, esferas, cones, corações. Raspada compulsivamente, reduz-se a esculturas minúsculas que são associadas a objetos da intimidade doméstica em cenas fotografadas. Uma moeda, um cristal de rocha, uma nota de dólar, um estilete, um lápis do MoMa, um lenço branco de papel rosado de sangue.

Jac Leirner não gosta de trabalhar com fotografia. "Não me identifico com a linguagem fotográfica", diz. Mas usou uma câmera para registrar três noites brancas em 2010. Três noites de uso da droga, três noites de compulsões, três noites em que o espírito da arte também se manifestou, em estreita conexão com os caminhos e descaminhos da vida.

"A urgência do artista fez com que eu fizesse as esculturinhas. Não era para ser mostrado, era uma necessidade de transformar, mas percebi nas fotos uma força plástica", diz ela, enquanto percorremos as obras expostas nas paredes da Fortes, D'Aloia & Gabriel, em São Paulo. O título da mostra —Adição— é uma dupla referência. Remete diretamente ao processo de dependência química, que afligiu a artista, e a um procedimento da modernidade que ganha contornos particulares em sua trajetória: o acúmulo de objetos ordinários, retirados da vida cotidiana, para a construção de obras de arte.

Em 1982, com 21 anos, Jac expôs "Inacabável (Roda sobre Roda)", trabalho construído pelo empilhamento, em torno de um eixo, de formas circulares de diversos materiais, como vidro, plástico, madeira e feltro —um processo que reapareceu em diversas séries subsequentes, como as antológicas "Os Cem", "Pulmão" e "Nomes", todas da década de 1980.

Na primeira, ela criou obras com formas e significados variados a partir da reunião de notas de 100; em "Pulmão", a matéria-prima foi um conjunto de 1.200 maços de Marlboro; em "Nomes", o ponto de partida são sacolas plásticas subtraídas do território aditivo do consumo —inclusive o de arte.

Na mostra, que pode ser vista em São Paulo até o próximo dia 28, as fotografias —publicadas em sua totalidade num livro— são apresentadas justapostas em peças horizontais, que sugerem pequenas narrativas dramáticas ou cinematográficas, com títulos como "Macbeth", "Oh Yes, Yes" ou "Round Ones". Dispostas em igual sentido, outras obras agrupam, segundo critérios cromáticos, elementos do universo da maconha, como embalagens de papel para enrolar cigarros.

Vistas à distância, essas réguas de madeira que servem de base para as fotografias e os invólucros de seda evocam a representação gráfica de velocidade presente em HQs e desenhos animados —e também a aceleração provocada pelo consumo de cocaína.

Completa a mostra uma instalação feita de sobras de cigarros de maconha, as baganas, perpassadas por fios e obsessivamente ordenadas por tamanho, das menores para as maiores.

"É claro que nesse processo não pude deixar de pensar na experiência de outros artistas", diz Jac. "Como fazer uma escultura de cocaína e não pensar em Hélio Oiticica? Como usar maconha e não pensar em poetas como Baudelaire ou Fernando Pessoa, nos 'Paraísos Artificiais', no 'Opiário', no absinto?".

No mesmo endereço da exposição, na esquina da rua Fradique Coutinho com a Purpurina, na Vila Madalena, funcionou a lendária galeria Camargo Vilaça, fundada em 1992, da qual a Fortes, D' Aloia & Gabriel (que também já foi Fortes Vilaça) é uma espécie de herdeira e continuadora, já com longo e estabelecido percurso próprio.

Marcantônio Vilaça (1962-2000), o fundador da Camargo Vilaça, morreu prematuramente, mas viveu o bastante para ajudar a impulsionar no cenário nacional e internacional a obra de jovens artistas que despontaram a partir dos anos 80, como Beatriz Milhazes, Vik Muniz, Ernesto Neto —e a própria Jac Leirner, que trabalhou com o marchand numa fase em que já havia mostrado trabalhos no exterior.

Nos 26 anos que nos separam da fundação da galeria, muita coisa aconteceu no meio das artes, no Brasil e no exterior. A relativa estabilidade e crescimento econômico do país, progressivamente integrado aos fluxos da globalização, aproximou a cena artística brasileira do circuito internacional, que por sua vez passou por um processo quase que desenfreado de ampliação mercadológica e institucional.

Jac, testemunha desse processo, presenciou um movimento de forte expansão e alta rotatividade de curadores, assistentes e diretores no mundo de museus, galerias, coleções e instituições.

"Hoje as instituições de arte viraram quase que uma peste", afirma. "Todos os multimilionários têm seus museus particulares, por diversos motivos: tributários, financeiros e até mesmo por amor à arte. E está acontecendo uma grande expansão na Ásia, em especial na China, para onde já foram as grandes galerias do Ocidente."

Nos anos 1980, museus e organizações similares, que em geral privilegiavam acervos e exposições de artistas históricos, passaram a acolher de maneira mais ampla a arte contemporânea. "Foi uma novidade", lembra Jac, "mas agora o que está acontecendo é que as instituições estão abrindo seus espaços e suas pernas para o mercado. O mercado está dentro das instituições."

A artista vê na cena atual uma espécie de "grande maçaroca", causada pela diluição de fronteiras e inversão de papéis.

"Feiras algumas vezes exibem arte de ponta, enquanto galerias em certos casos fazem o papel de instituições e mostram obras que aparentemente são invendáveis; fazem também exposições de artistas com trabalhos muito engajados, que parecem ir contra o mercado, mas que acabam finalmente sendo absorvidos, porque o mercado absorve tudo, seja uma nuvem, uma ideia, uma lágrima ou um som", diz Jac.

"É lógico que muitos artistas ficam fora disso. Eles não têm galerias para representá-los em feiras e não entram nesses museus. Ficam no underground, fora do circuito. E temos hoje também essas artes insuportáveis, como arte de rua, arte feminista, arte desse pessoal ativista."

Na onda emergente dos movimentos identitários e da polarização ideológica, a seara cultural, em suas diversas frentes, passou nos últimos anos a conviver com uma proliferação de produções que muitas vezes extraem seu interesse antes de causas e reivindicações do que da imaginação ou da potência da linguagem artística.

"Outro dia me perguntaram se a arte 'resiste'. Eu respondi que ela existe, ela não resiste. Não tem essa de resistência. Esse ativismo é um uso da arte que a denigre e rouba", critica Jac.

"Não é só política, mas todos esses grandes temas, como economia, violência, gênero... São assuntos muito importantes, mais importantes até do que a arte, que devem ser tratados com respeito e conhecimento. Mas não é na arte que isso vai ser resolvido. A arte incorpora tudo isso, mas ela incorpora de forma presencial. Ela apresenta, ela não representa. Ela é a economia, ela é o gênero, ela é a política, não é que ela fale de."

Jac continua: "A arte é tomada de empréstimo para cumprir uma função que, no fundo, não tem. Se transforma em ilustração. Passa a ilustrar esses outros assuntos."

Assuntos que com frequência vêm se impondo em curadorias e exposições em prejuízo de um aprofundamento da poética da arte. "Esses museus e essas grandes mostras estão servindo muitas vezes a essas questões e temas, trazendo grandes públicos interessados neles. Claro que a arte desdobra ideias, desdobra emoções e desdobra história. Mas essa arte como ilustração não desdobra nada, ela apenas ilustra qualquer coisa." 


Marcos Augusto Gonçalves é repórter especial da Folha, editor da série de cadernos temáticos "E agora, Brasil?" e autor de "1922 - A Semana que não Terminou". Foi editor da Ilustrada e da Ilustríssima.

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