O retorno de Otto Gross, o psicanalista que foi banido por Freud e Jung

Nova coletânea procura resgatar do ostracismo figura hoje pouco conhecida mesmo entre pessoas da área

Marcelo Checchia

[RESUMO] Otto Gross, considerado psicanalista promissor, foi banido da área após imbróglio  que envolveu Freud e Jung. Nova coletânea de seus textos procura resgatá-lo do ostracismo.

"É muito grande o respeito que tenho por Otto Gross", escreveu Sigmund Freud em 1908. O pai da psicanálise —que lutava pelo estabelecimento da disciplina, sob ataque da comunidade médica— via no discípulo grande potencial. Considerava-o muito inteligente e utilizava em relação a ele adjetivos como talentoso, decidido, valioso. Também dizia que Gross era uma das poucas pessoas capazes de dar uma contribuição original ao método terapêutico em desenvolvimento naquela época.

Sándor Ferenczi, um dos fundadores da Associação Internacional de Psicanálise (IPA, na sigla em inglês), afirmou em carta dirigida a Freud, de quem era um dos colaboradores mais próximos: "Sem dúvida, entre os que têm seguido o senhor até agora, ele é o mais importante". Ernest Jones, responsável por levar a psicanálise à Grã-Bretanha e mais longevo presidente da IPA, foi ainda mais categórico: "[Gross é] o exemplo mais próximo que já conheci da ideia romântica de gênio".

Apesar do destaque mais de um século atrás, o austríaco Otto Gross (1877-1920) é hoje uma figura desconhecida até mesmo entre pessoas da área. Os poucos que ouviram falar a seu respeito acreditam se tratar apenas de um psicótico, ignorando o papel relevante que desempenhou não só pelos textos e talento clínico admirados pelos principais psicanalistas da primeira geração mas também pela influência sobre artistas, sociólogos e anarquistas.

Como aquele que foi considerado um irmão gêmeo por Carl Jung, primeiro presidente da IPA, passou a ser definido pelo colega como um doido varrido e parasita?

A história de Gross |1| aponta para controvérsias importantes e revela uma reprodução de mecanismos de poder que os próprios psicanalistas consideram deletérios.

Gross era praticante da psicanálise já nos primeiros anos do século 20, fazendo defesa da área em artigos e congressos médicos. Não obstante seu reconhecido brilhantismo, ele trazia algumas dificuldades para a comunidade que então se construía.

Declaradamente anarquista, ele vivia de maneira condizente com seus princípios políticos: não se submetia a nenhuma autoridade, defendia o amor livre e lutava pela libertação das mulheres do jugo dos homens. Além disso, não só tinha grave vício em ópio e em cocaína como também defendia sua adição. A combinação desses traços tornava Gross uma pessoa excêntrica para a sociedade da época.

Freud conhecia bem os riscos do vício (ele testou cocaína em tratamentos antes de criar a psicanálise) e se preocupava com Gross, um de seus discípulos cotados para comandar a IPA, que seria fundada em 1910.

Assim, em 1908, o pai da psicanálise prescreveu a internação de seu discípulo no hospital em que Jung trabalhava. De acordo com seu pedido, caberia ao colega promover apenas a desintoxicação de Gross, para que, cinco meses depois, o próprio Freud assumisse o caso.

Jung, no entanto, decidiu começar o tratamento psíquico por conta própria. A atitude em si já chama a atenção, tanto pelo desrespeito à determinação de Freud como pela forte aversão que sentia em relação ao comportamento transgressor de Gross —cuja inteligência, de qualquer modo, admirava.

O caso fica ainda mais estranho porque, a princípio, Jung diagnostica Gross com uma neurose obsessiva, mas, semanas depois, muda o quadro para demência precoce. Freud, por sua vez, que concordara com a primeira opinião, hesita diante da segunda, embora sem nunca levantar objeção relevante.

Para piorar, nenhum documento traz evidências de que Gross sofresse de demência precoce, e cartas posteriores do próprio Jung sugerem que o diagnóstico correto era mesmo o de neurose obsessiva agravada pelo uso de drogas.

As possíveis explicações para o episódio são complexas. Envolvem questões amorosas (arauto da poligamia, Gross influenciou Jung, que chegou a ter uma paciente como amante) e disputas de poder (ambos figuravam como prediletos de Freud para liderar a associação psicanalítica).

Também envolvem a mesquinharia paterna e o que parece ser uma fraude. Hans Gross, pai de Otto, fundou a criminologia moderna; um dos principais defensores da teoria da degenerescência —que pregava a exclusão de homossexuais, ladrões, loucos, viciados e pervertidos da vida social—, não poderia ter um filho degenerado.

Quando Freud prescreveu a internação de Otto em 1908, ele o fez a pedido de Hans. Este queria mais: um diagnóstico que lhe permitisse obter a tutela judicial do filho. O quadro de demência precoce sem dúvida servia a esse propósito.

Servia ainda ao propósito de afastar Gross da corrida pela presidência da IPA —o que interessava a Jung— e de banir um indivíduo que, aos olhos de Freud, àquela altura poderia ameaçar a consolidação e a expansão da psicanálise —Gross teve filhos em diferentes relacionamentos, mantinha uma vida errante e era amigo de anarquistas.

Não contente com a exclusão de Gross da comunidade psicanalítica, Freud empreendeu esforços para dissociá-lo do campo em formação. Pediu para que retirassem uma citação a ele num texto seu e para que apagassem seu nome do relatório do primeiro encontro internacional de psicanálise.

Ainda que sem o respaldo de seus colegas mais importantes, e procurando evitar as armadilhas judiciais de seu pai, Gross passou a viver como fugitivo, um nômade sem endereço fixo, exercendo a psicanálise como renegado na casa de pacientes ou em bares no circuito artístico e anarquista que o protegia.

Freud continuou acompanhando a produção científica de Gross e admirando suas ideias —como atestam cartas que trocou com Jung—, mas ainda assim o manteve excluído.

Gross talvez fosse, de fato, um problema para a psicanálise do início do século 20, mas cabe perguntar se a luta pela causa justifica um ato de tamanha violência. Não é contraditório que a comunidade psicanalítica tenha sido intolerante com alguém que agia de acordo com a ética de sua singularidade?

A recém-lançada coletânea "Otto Gross: Por uma Psicanálise Revolucionária" mostra a relevância desse personagem para a psicanálise, para diversos escritores expressionistas de língua alemã —como Franz Jung, Franz Kafka, Leonard Frank, Franz Werfel e Max Brod— e para o próprio movimento anarquista.

Os textos desvelam as ideias de um pensador interessante e original —um psicanalista que constantemente nos provoca a encontrar em nós mesmos a vontade de potência e a analisar seus efeitos, bem como a identificar a cultura patriarcal em suas configurações mais diversas.

Gross foi o primeiro a pensar em uma participação mais ativa da psicanálise na política; chamou a atenção para a vontade de potência existente em cada um, para o princípio de autoridade e para a importância de nos libertarmos desse princípio.

Sua teoria e sua vida instigam a pensar em como as instituições psicanalíticas reproduzem o modelo patriarcal até hoje. Seus escritos e sua história indicam que os próprios psicanalistas fazem uso do princípio de autoridade para satisfazerem sua vontade de potência. Por isso, a publicação dos textos de Gross pode ser chamada, como o fez Gottfried Heuer na apresentação desta coletânea, de um retorno do recalcado.

Os prejuízos da estratégia de recalcar o elemento desagradável na defesa de uma causa, usado por Jung e Freud (e outros, na esteira deles), são incomensuráveis não só para Gross mas também para a comunidade psicanalítica.

A exclusão dos dissidentes impede que a psicanálise se enriqueça e se renove a partir da tensão entre as diferenças. Ora, o próprio Freud não se servia frequentemente dessa tensão para elaborar e defender determinadas posições teóricas e clínicas?

A publicação da história de Gross e de seus textos pode, quem sabe, estimular debates sobre suas ideias no cenário psicanalítico brasileiro. Mas os efeitos do retorno desse recalcado conheceremos só depois.

|1| Há uma análise mais extensa em “Otto Gross: um caso de segregação e esquecimento na história da psicanálise” (em revistalacuna.com).

Otto Gross: Por Uma Psicanálise Revolucionária

  • Preço R$ 63 (270 págs.)
  • Autor Marcelo Checchia, Paulo Sérgio de Souza Jr.,Rafael Alves Lima (org.)
  • Editora Annablume

Marcelo Checchia é psicanalista, pós-doutorando em psicologia clínica pela USP, autor de "Poder e Política na Clínica Psicanalítica" (ed. Annablume) e um dos organizadores da edição brasileira da obra de Otto Gross.

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