Descrição de chapéu Perspectivas

Tirania da irreverência compromete esforço dos booktubers

Se alguém consegue pronunciar a palavra Auschwitz com arrojo, estamos mesmo perdidos

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ISMAR TIRELLI NETO

“Quem é ‘você’ para falar de literatura?” é uma pergunta a que os booktubers já parecem mais ou menos habituados, e que lhes chega disparada de todas as frentes —intelectuais, membros de “fan bases” percebidas como injustiçadas etc. É também uma pergunta que coloco frequentemente a mim mesmo.

O que me capacita, para além de estar no mundo, a falar sobre o que quer que seja? Neste caso específico, pareço ocupar posição curiosa, equidistante tanto daqueles que os booktubers taxam de “intelectualoides” quanto dos próprios booktubers. Estive ao largo do fenômeno por muitos anos, vagamente ciente do que se passava.

câmera em frente a modelo
Colagem - Alex Kidd

Tenho uma pequena prática literária. Crítica também, quando me pedem. Esta prática literária se dá majoritariamente em poesia, pelo menos até o presente momento. E poetas, sobretudo os que a boa morte não fez ainda o favor de levar, são seres eminentemente negligenciáveis.

Os canais que tenho frequentado nestes últimos dias, quando tratam de poesia, tendem a parar, tal como meus professores de literatura do ensino médio, na geração mimeógrafo. Discutem Ana Cristina Cesar e Leminski, pouco além. Digo isto para demonstrar o quão a salvo estive até há pouco.

Recentes polêmicas sobre a prática levaram-me a frequentar alguns destes canais na esperança de emergir da experiência com juízo pertinente e avisado. Confiava que este fenômeno pudesse eventualmente dar lugar a discussões mais fecundas, embora menos divertidas.

Querendo ou não, o booktubing “reformula” com clareza impecável uma série de questões pertinentes. Existe maneira adequada de falar sobre literatura? Haverá outras instâncias que não a crítica acadêmica e a crítica jornalística?

O fato é que muito rápido percebemos os traços comuns, a amarra tonal que parece unir todos estes canais. Há uma descontração compulsória aí, herdada do “youtubismo” como um todo. “Oi, gente, hoje eu vim aqui falar pra vocês sobre...”.

Os signos de arrojo e irreverência têm qualquer coisa de tiranizante. Tanto no texto quanto na imagem. Oferecem restrições a priori. Impossível falar a sério dessa maneira. Impossível tratar de certos tipos de literatura neste tom.

Ou será possível? Uma das experiências mais desagradáveis que tive durante esta imersão foi assistir a um vídeo sobre o Primo Levi. As duas apresentadoras abrem o vídeo discutindo qual seria a pronúncia correta do nome do autor. Gesticulam, testam possibilidades. São joviais e simpáticas, vestem-se como num dos primeiros filmes do Almodóvar. 

Atrás delas, uma estante que diz muito mais sobre o que o senso comum tem na conta de elegância do que sobre literatura. Reproduções de pôsteres de filmes do Polanski e do Bava, um porta-canetas em formato de abóbora de Halloween.

Esses signos querem comunicar que estamos nas mãos de pessoas um pouco melhores que a média, mas ainda assim acessíveis e dinâmicas. Não há real diferença entre essas apresentadoras e o pessoal que enxameava a saída do Estação Botafogo quando eu era moço. Gente exasperante, mas inofensiva.

Era o que eu pensava, o que eu vinha pensando. Até que uma delas pronunciou o nome Auschwitz.

E na maneira como ela disse esse nome, esse nome maldito, esse nome que há tantas décadas buscamos maneira justa e cabível de pronunciar, uma absoluta imoralidade se insinuava. Uma certa alegria. Uma atitude um pouco exclamativa. Como se a apresentadora estivesse recomendando um musical da Broadway. “Auschwitz!”. “Ele foi prisioneiro de... Auschwitz!”. 

A partir desse momento, as cores pareceram vibrantes demais, e todo o repertório gestual —abraçar um exemplar de “71 Contos de Primo Levi” como se fosse um cãozinho filhote, algo assim—, perturbadoramente inadequado. Em nenhum outro momento o problema tonal que tanto me aflige no booktubing se fez tão evidente. 

Se alguém, independentemente de suas intenções (desnecessário dizer que as apresentadoras não são “a favor” do Holocausto, tratamos aqui de outra coisa), consegue pronunciar a palavra “Auschwitz” daquela maneira, então, estamos mesmo perdidos e o mundo já acabou.

Dou um exemplo bastante extremo de desconexão tonal, mas há outras coisas inquietantes a ressaltar. A doentia importância que se dá ao “tamanho” dos livros consumidos, por exemplo. A leitura de “calhamaços” é celebrada como teste de resistência. Os objetos ganham. 

Percebe-se também uma certa tendência autocongratulatória em momentos de crise. São indivíduos muito ciosos de terem inventado um formato, de terem formado um nicho, e quando são chamados a se responsabilizar pelo que fazem, cantam o próprio pioneirismo como manobra de distração. 

Os opositores, como outros já assinalaram, são “invejosos” e “fracassados”. Fica-se assim, no pátio do colégio, e raramente as resenhas excedem, em interesse, os roteiros de leitura rasos e convencionais das salas de aula (pelo menos as que eu frequentei).

É difícil conciliar o vibrante do formato com o mar de platitudes em que nadam seus criadores. Em tese, nada mais interessante e correto que um indivíduo se expor e fincar no mundo suas opiniões sobre determinado assunto. 

Mas penso que o booktubing pode mesmo integrar um ciclo de desencanto mais abrangente que engloba toda a internet. Tivemos, em algum momento, a faca e o queijo na mão para democratizar saberes e construir sólidas comunidades em torno de gostos compartilhados. E tomamos a direção contrária. 


Ismar Tirelli Neto é poeta e escritor.

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