Descrição de chapéu
Felipe Motta Veiga

Crise não é do humor, Porchat, mas do humorista que teme incomodar

Autor comenta declaração do humorista sobre impasses da comédia hoje

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[RESUMO] Em contraponto a fala de Fabio Porchat de que há uma crise no humor em todo o mundo, autor argumenta que a comédia continua popular, mas que certos valores que vicejam em nossa época, como uma concepção moralista e tacanha que vê na arte sobretudo uma forma de denúncia contra injustiças, impedem que tenhamos uma compreensão mais madura do que nos faz rir.

"Existe uma crise do humor no mundo", afirmou o comediante Fabio Porchat em entrevista recente à Folha. Hoje em dia, segundo ele, só haveria espaço para o humor escatológico ou para o humor sem graça feito para agradar ao progressismo tuiteiro. Certos assuntos que antes eram abordados pelos humoristas teriam se convertido em tabus.

Compreendo a queixa de Porchat. Um humorista tem, em tese, o direito de falar sobre o que bem entender. Mas quem o proíbe de fazê-lo? Poderíamos responder a Porchat que hoje ainda há espaço para todo tipo de humor, embora alguns canais de televisão e serviços de streaming privilegiem as tais piadas escatológicas e façam concessões desavergonhadas aos militantes das redes sociais. É a subserviência a essas empresas de comunicação e a seus espectadores que tolhe a liberdade criativa do humorista.

O humorista Fabio Porchat fantasiado em programa de TV - Fabio Rocha/Globo

O humor, portanto, não está em crise. O que está em crise é a consciência de quem quer fazer humor sem desagradar a quase ninguém. E digo "quase" porque, naturalmente, é de bom tom zombar de determinadas figuras cuja estima o mercado audiovisual não parece interessado em conquistar.

Contudo, nesta época em que tanta gente se ofende com facilidade, o humorista se encontra talvez numa encruzilhada. Ou deve evitar temas polêmicos, a fim de não ser cancelado pela turba das redes, ou deve assumir o risco de despertar a ira de diferentes setores da sociedade, incluindo seu próprio público. No primeiro caso, ele se torna um covarde. No segundo, torna-se uma espécie de anti-herói.

Quando diz uma frase polêmica, o humorista não está forçosamente emitindo uma opinião pessoal. Afinal, uma das atribuições básicas desse artista, como de qualquer outro, é captar e exprimir o ruído de seu tempo. Se hoje circulam por aí ideias preconceituosas de várias estirpes, ele se encarregará de dar voz a esses juízos que, encenados no palco, isto é, num terreno ficcional, têm a virtude de defrontar o espectador com suas próprias mesquinharias.

O humorista, não raro, encarna comportamentos abjetos a fim de mostrar como estes são reprováveis. E se a plateia ri, isso diz mais sobre ela do que sobre ele. Quem ri consente, então? Não necessariamente. Às vezes, escutar uma piada imoral nos faz gargalhar porque sabemos que se trata de algo "errado", porque o fato de alguém dizê-lo em público é por si só absurdo, e não porque estejamos escarnecendo do objeto da piada.

Porchat mesmo, em programa de auditório, fez nesta quinta-feira (18) uma piada sobre o caso do idoso que supostamente morreu em uma agência bancária, levado por uma mulher para assinar um empréstimo. Todo o auditório gargalhou, mas logo as patrulhas da internet, brandindo manuais de bons costumes, apressaram-se a condenar o humorista, que segundo elas teria feito uma brincadeira de mau gosto. Nessas circunstâncias, porém, quem ri da piada ri também do disparate da situação real que a motivou, situação que nem por isso deixa de ter um componente trágico.

Podemos admitir que o humor é, em alguns casos, capaz de ofender este ou aquele grupo de pessoas. E não é menos verdade que, com o tempo, a percepção dos princípios morais se modifica e que, devido a essa mudança, deixamos de achar engraçado o que fazia rir as gerações mais velhas. Mas, embora um piadista seja decerto responsável pelo que diz, uma piada é sempre uma expressão do contexto social em que vivemos.

É fácil compreender por que alguns progressistas só aceitam piadas que satirizam o patriarcado, o racismo, a homofobia. Eles acham que os homens que ocupam posições de poder, e que seriam culpados por condutas racistas ou homofóbicas, são os únicos "alvos" moralmente aceitáveis do humor.

Mas se humoristas fazem piada sobre tudo e todos, inclusive sobre as ditas minorias, é porque entendem que mesmo entre os defensores de causas supostamente legítimas há hordas de estúpidos e aspirantes a tiranetes.

Não se trata de recusar sumariamente as reivindicações políticas dos grupos minoritários. Trata-se de reafirmar o velho ditado: o inferno está cheio de boas intenções. É sempre derrisória a hipocrisia de quem, julgando-se paladino da revolução, age como o mais sórdido reacionário.

Aqui, não seria despropositado trazer à baila uma nota que consta em edição de 1932 do falecido jornal carioca A Noite. Às vésperas do Carnaval, o chefe de polícia expedia um ofício recomendando "mui cuidadosa atenção sobre a letra das canções carnavalescas, no sentido de evitar alusões ofensivas ou ridicularizadoras a corporações públicas e religiosas, ou que possam ofender individualmente a quem quer que seja".

A nota foi publicada há quase um século, mas é certo que muitos de nossos congressistas, magistrados e militantes atuais fariam coro com o chefe de polícia da época. O mesmo espírito puritano continua vivo até hoje. Por todo lado ainda há quem cultive essa seriedade hipersensível, essa sisudez de cristal.

O humor inevitavelmente faz um recorte da realidade e, em parte, digamos, conta uma mentira. Assim são as caricaturas, assim os estereótipos, elementos típicos da comédia. É evidente que, quando olhamos as coisas mais de perto, vamos notar como as figuras cômicas são, em sua maioria, reducionistas, como deliberadamente reforçam certos aspectos da realidade em detrimento de outros.

O problema, contudo, não está nos estereótipos. Está nas pessoas que deixam que eles definam sua opinião sobre um lugar, uma cultura ou um indivíduo, ou naqueles que veem a vida unicamente sob o prisma do humor.

Os estereótipos são distorções e, como tais, nos fazem rir por seus exageros e absurdos. Mas, se por um lado sabemos que o mundo é bem mais complexo que isso, por outro temos de reconhecer que algumas caricaturas alcançam uma precisão arrasadora.

No fundo, o que nos impede de ter um entendimento maduro do humor é uma certa concepção de arte, careta, tacanha e moralista, que faz fortuna em nosso tempo.

Refiro-me à ideia de que toda expressão artística deve se insurgir abertamente contra alguma injustiça, deve buscar corrigir comportamentos imorais.

Conforme esse pressuposto, uma obra de arte funcionaria principalmente como denúncia, mas uma denúncia do tipo mais simples que há: deixando claro quem é o criminoso e quem é a vítima, numa lógica maniqueísta que ofusca as nuances e contradições da alma humana.

Ao revirar modismos de ponta-cabeça e imaginar situações estapafúrdias ou exageradas, o humor opera como um antídoto contra o senso comum e põe em xeque as convicções que sustentam nossa visão de mundo. Em geral, tiradas humorísticas são o melhor meio de fazer uma crítica sem cair em moralismo.

E é por isso que não, não há crise nenhuma no humor. Como o próprio Porchat reconhece, "é o humor que lota os teatros". Compete aos humoristas, portanto, e somente a eles, não permitir que os espetáculos fiquem vazios.

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