Descrição de chapéu

Falta de controle sobre sistema carcerário dá força à geopolítica do terror

Especialista em criminalidade aponta ineficiência caótica das políticas públicas para a segurança

Claudio Beato

Dois livros recentes tratam de um mesmo assunto que habita o imaginário de temores dos brasileiros —o Primeiro Comando da Capital (PCC)

“Irmãos - Uma História do PCC”, de Gabriel Feltran, busca compreender as bases sociais de sua existência e capilaridade nas comunidades de São Paulo e bairros da periferia. Já Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, em “A Guerra - A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil”, trazem uma versão atualizada dos desdobramentos mais recentes do crime em crescente estruturação. 

Enquanto o primeiro tem a estrutura de uma etnografia narrada através de crônicas e ensaios, o outro exibe formato de thriller jornalístico para contar a saga da facção criminosa, quase como uma série televisiva.

Todos os ingredientes estão ali: centenas de mortes, chacinas, cenas de crueldade explícita, corrupção sistêmica, chacinas e policiais violentos envolvidos com o crime. Enquanto o primeiro texto conta histórias de solidariedade na irmandade, o segundo é recheado de cenas de sangue protagonizadas pelas facções.

Temos aqui duas descrições ricas e bem escritas sobre uma das maiores e mais temidas organizações criminais brasileira. São para o grande público, mas se constituem numa importante contribuição para os estudos sobre prisões e o crime organizado no Brasil. Embora seja um tema de primeira grandeza no universo dos problemas da segurança pública, sua discussão empírica está muito aquém do necessário para uma compreensão mais abrangente. 

O estudo da ordem social nas cadeias, bem como de seus mecanismos de governança e influência externa, têm uma sólida tradição nos estudos prisionais. Nos EUA, houve estudos clássicos como o de Gresham Sykes, que escreveu “The Society of Captives” (a sociedade dos cativos), até o recente “The Social Order of the Underworld” (a ordem social do submundo), de David Skarbek, dentre outros. 

Por aqui, tivemos grandes estudos como o de Antônio Luiz Paixão, em “Recuperar ou Punir” (Cortez Editora), e o de Edmundo Campos Coelho em “A Oficina do Diabo” (Record). Ainda discutimos os mesmos dilemas e desafios que estão entre nós há mais de 30 anos.

A existência de grupos, facções e gangues no interior de prisões é um mecanismo desenvolvido para evitar um estado de natureza hobbesiano: a guerra de todos contra todos. As sociedades dos cativos desenvolvem códigos de conduta, bem como laços de lealdade, cujo objetivo é a manutenção da ordem no sistema.

Prisões são dimensões de primeira grandeza para compreendermos como estão se estruturando as atividades criminosas e o crime organizado no Brasil, e têm sido um centro fulcral para compreendermos o que está ocorrendo no país hoje. Elas são o motor de um ciclo evolutivo de atividades criminosas que está em transição para formas mais articuladas. 

Gangues de bairro, que nos anos 1960 constituíam se num problema público localizado, ao serem jogadas num sistema violento, corrupto e descontrolado, terminam por criar estes mecanismos de solidariedade como proteção. Isso acaba gerando um novo patamar de estruturação das atividades criminosas, tal como ocorreu em outros países da América Latina e nos EUA.  

A existência de um PCC, com uma estrutura descentralizada e regionalizada, indica que o sistema de reputações e governança opera no interior dos presídios com a função de estabilizar potenciais conflitos internos. A questão é: por que isso transbordou para fora dos presídios? Acalma-se o sistema, mas acirra-se a violência fora dele, especialmente em outras regiões do país? 

Associação por conveniência converte-se em mecanismo racional de proteção por parte da irmandade, que passa a operar fora dos presídios. Contudo, a forma violenta de operar indica que, em algum momento, essa etapa será suplantada por outros grupos organizados mais estruturados política e economicamente.

A descrição jornalística e literária de Gabriel de como o PCC torna-se quase um movimento social nas ruas, recrutando jovens e amparando uma rede de cobertura para legiões de vendedores no varejo, não deixa de ser contraditória em relação a uma imagem de crime organizado transnacional.

Temos um retrato congruente com o argumento de que teriam definido os rumos da política de segurança em São Paulo para muito além dos presídios, julgando e mediando casos de homicídios através dos tribunais do crime no estado.

Essa é certamente a tese mais controversa subjacente aos dois textos. Estudos que analisaram a queda dos homicídios nos 645 municípios do estado de São Paulo não sustentam essa afirmação.

A descrição dos mercados ilegais mereceria um enfoque mais propriamente econômico, amparado por dados e projeções. Embora sejam informações de difícil obtenção, a simples descrição das redes ilegais de mercadorias, em particular a de caminhões, nos deixa frustrados. Nada é discutido sobre a conexão com outras atividades criminosas —lavagem de dinheiro, pirataria e prostituição, por exemplo— ou a cooptação política.

São recorrentes no imaginário brasileiro teorias que nos dizem que existem grupos extremamente poderosos, quase invencíveis, atuando no crime organizado. De fato, conforme nos mostram de forma convincente os autores, existem grupos poderosos. Mas juntar e misturar tudo tem pouca utilidade do ponto de vista das políticas de segurança. 

A criação da figura (até certo ponto mitológica) do grande crime organizado não permite distinguir as diversas formas de sociabilidade inerentes à formação de grupos e atividades criminosas e de como a própria ilegalidade faz parte da estruturação dessas atividades.

Além disso, temos outros aspectos organizacionais a serem compreendidos acerca da evolução da população prisional. Qual o impacto das mudanças demográficas nas prisões? Um aumento de jovens mais violentos estaria tensionando o sistema? Nas entrelinhas dos relatos, e no suposto aumento de condenados por porte de drogas, parece que isso tem sido importante. 

Qual a composição educacional e de renda? Quais as condenações? Isso poderia lançar luzes no tipo de governança prevalecente nos dias atuais. Infelizmente esse tipo de estudo não tem sido feito no Brasil, ainda pouco afeito a diagnósticos em profundidade do sistema.

O quanto a criminalidade é organizada ainda é incerto, mas o quão ineficientes, caóticas e disparatadas têm sido nossas respostas e políticas públicas, isso fica bem claro. 

A ausência de controle sobre o sistema carcerário é o resultado de nossa incapacidade em gerir a população prisional —em parte porque não entendemos bem nossas prisões nem quem são as pessoas que estão ali dentro. Trata-se de lapso cognitivo que impede respostas racionais e nos torna reféns de imagens míticas e magnificadas que nem sempre correspondem à realidade.


Claudio Beato, sociólogo, é coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da UFMG.

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