Deturparam a verdade sobre o filme, diz ex-ator que fez cena erótica com Xuxa aos 12 anos

Fora dos circuitos há três décadas, longa 'Amor, Estranho Amor' será exibido pelo Canal Brasil

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Donny Correia

Doutor em estética e história da arte e membro da ABCA e da Abraccine. É autor de seis livros e prepara uma revisão da obra completa de Walter Hugo Khouri

[RESUMO] Em entrevista, ex-ator relembra participação quando garoto no filme “Amor, Estranho Amor”, de Walter Hugo Khouri, no qual seu personagem era seduzido pelo de Xuxa Meneghel. Fora de circuito por 30 anos, longa foi tachado de pornográfico e pedófilo. Encerrado o embargo, diz ele, poderá ser reavaliado pelo que de fato é: uma produção requintada e profissional sobre o desejo e os tormentos políticos do país.

Varrido para debaixo dos tapetes de um moralismo de fachada, onde permaneceu por décadas, “Amor, Estranho Amor” (1982), dirigido por Walter Hugo Khouri, finalmente estreará na TV ao integrar uma breve retrospectiva do cineasta paulista, para o entusiasmo de muitos que reconhecem o valor da obra e, também, para a repulsa de certa fatia da opinião pública que insiste na falácia sobre “o filme pornográfico da Xuxa” ou “o filme em que a Xuxa seduz um menino”.

O filme terá sua primeira exibição na TV no Canal Brasil, na madrugada (0h30) de quinta (11) para sexta (12).

A exibição abre grandes possibilidades de que o filme, após décadas de polêmica rasa, seja finalmente entendido pelo que é: uma reflexão sobre o poder das memórias, sobre as complexas relações familiares e sobre a história política do país, às vésperas de um golpe.

No limite, a exibição também redime o legado de Walter Hugo Khouri, a carreira de Xuxa Meneghel e a vida de Marcelo Ribeiro, o protagonista da trama. “Por culpa da mídia sensacionalista e das figuras públicas desavisadas ou mal-intencionadas, deturparam a realidade”, afirma Marcelo, hoje com 51 anos, que viveu o protagonista Hugo no filme quando tinha 12.

Por que “Amor, Estranho Amor” ainda suscita tantos comentários, dos mais leigos e ingênuos aos mais elogiosos e saudosistas? O filme não nasceu de geração espontânea, talhado para causar celeumas que extravasaram a esfera da arte e foram parar nos tribunais. No início dos anos 1980, Khouri (1929-2003) já acumulava 30 anos de uma carreira marcada por alguns dos filmes mais importantes do cinema brasileiro, como “Noite Vazia” (1964) e “As Amorosas” (1968).

Nos anos 1970, Khouri se dedicou a filmes mais herméticos e econômicos, voltados ao exame da psicologia humana em sua essência, caso de “As Deusas” (1972), ou “O Desejo” (1975). Com baixo retorno nas bilheterias, o próprio cineasta se referia ao período como um momento de sua carreira em que se tornou “veneno de bilheteria”.

Em 1981, Khouri ressurgiu com “Eros, o Deus do Amor”, um de seus filmes mais complexos e plásticos, cuja linguagem ousada e experimental coloca o espectador na pele do personagem central por meio de uma câmera subjetiva que explora o mundo das lembranças e dos desejos incompletos. O longa representou o Brasil em Cannes e recolocou seu diretor entre os mais importantes do período.

No centro de São Paulo, a apresentadora Xuxa Meneghel, durante o lançamento de 'Amor Estranho Amor', em 1982 - Jorge Araújo/Folhapress

De volta ao mainstream do cinema nacional, Khouri firmou contrato para o próximo filme com o produtor Aníbal Massaíni Neto, da Cinedistri. O produtor pretendia compor um longa a partir de três curtas-metragens, dos quais um seria dirigido por Khouri, que abordassem a primeira relação sexual de alguns garotos. Uma das ideias propostas pareceu tão boa que o diretor foi incentivado a aumentar a história e transformá-la num longa.

Nascia “Amor, Estranho Amor”, cuja trama acompanha a chegada do garoto Hugo a um prostíbulo de luxo em São Paulo, em busca da mãe, Anna, vivida por Vera Fischer, uma prostituta muito requisitada no recinto. Surpreendida pela visita inesperada, a mãe terá de ocultar seu filho naquela noite, quando uma festa muito especial acontecerá ali.

O mais assíduo cliente de Anna, dr. Osmar (Tarcísio Meira), é um político da elite tradicional paulista que pretende firmar aliança com dr. Benicio (Mauro Mendonça), importante nome na política mineira. O plano é restaurar a República do Café com Leite e derrubar Getúlio Vargas. Mas a festa acontece justamente na noite de 10 de novembro de 1937, quando Vargas dá o golpe que inaugurou o Estado Novo.

O acordo não vem em forma de propinas e promessas de cargos públicos, mas como um agrado muito peculiar. Osmar dará de presente a Benicio a jovem e virgem Tamara (Xuxa Meneghel), uma ninfeta recém-chegada do Sul.

É, então, que passamos a acompanhar as descobertas de Hugo, esgueirando-se pelos bastidores do mundo dos adultos enquanto assiste a duras verdades: a profissão de sua mãe, o mundo de aparência da política, a perversão dos homens de poder e a descoberta da puberdade, na figura de Tamara, quase tão jovem quanto ele e entregue aos carrascos como se fosse um brinquedo. Tamara se afeiçoa por Hugo e o seduz naquela mesma noite.

O produtor Aníbal Massaíni, que detém os direitos do filme 'Amor, Estranho Amor', em que Xuxa aparece nua - Danilo Verpa/Folhapress

Isso nos leva ao segundo elemento importante para entender “Amor, Estranho Amor”. Nos anos 1980, Khouri já era conhecido pela beleza estética com a qual filmava o erotismo feminino, muito superior à maneira das comédias eróticas, que apresentavam uma nudez crua e utilitária. Várias atrizes iniciantes sabiam que filmar com o cineasta poderia significar uma porta de entrada para o estrelato, como acontecera com Lilian Lemmertz, Monique Lafond, Nicole Puzzi, Christiane Torloni e tantas outras.

Na mesma época, Xuxa Meneghel era uma jovem modelo cuja beleza mesclava inocência e sedução. Sua carreira já se mostrava promissora, e seu nome figurava na mídia também por conta de seu namoro com Pelé. O “rei” era amigo de Massaíni e viu em Khouri a oportunidade de que sua namorada conquistasse o meio artístico por seus próprios méritos.

Assim, Khouri concordou em escalar Xuxa para seu elenco. Por sua vez, a modelo jamais poderia imaginar que, dois anos depois, se tornaria apresentadora de programas infantis —e muito menos que, em pouco tempo, ganharia o título de “Rainha dos Baixinhos”. Foi, então, que uma disputa judicial teve início.

Quando “Amor, Estranho Amor” foi realizado, ninguém contava com a evolução tecnológica que ocorreria ao longo da década e popularizaria o VHS. No início dos anos 1990, Massaíni viu a possibilidade de lucrar com o lançamento do filme em home video. Por seu turno, o escritório de Xuxa Meneghel entrou com um pedido de embargo, alegando que a apresentadora assinara um contrato que não mencionava a difusão da obra em outras mídias, que, afinal, nem sequer existiam para serem cogitadas. Era o começo de um processo tortuoso que se arrastaria na Justiça.

Em 1991, a Justiça proibiu a comercialização da obra em VHS. Em relação aos outros meios de exibição, chegou-se a um acordo pelo qual Xuxa pagaria ao produtor um valor anual para que a produção não fosse mais exibida. Esse contrato, diz Massaíni Neto, expirou há quase quatro anos, o que abriu a possibilidade de levar o filme novamente aos cinemas e também à TV e serviços de streaming. Xuxa desistiu do embargo e passou até mesmo a elogiar o filme. Em suas redes sociais, chegou a sugerir que todos deveriam ver o filme, pois é “muito bom”.

Todo o imbróglio em torno do caso, no entanto, fez circular a descabida ideia de que Xuxa era uma artista hipócrita, pois antes de trabalhar no universo infantil teria se relacionado sexualmente com um garoto de 12 anos em frente às câmeras.

Marcelo, hoje um empresário do ramo de tecnologia, relembra em detalhes como se tornou pivô da polêmica: “Eu tinha o sonho infantil de ser ator. Quando passei no teste, com mais de 500 crianças, para 'Eros, o Deus do Amor', conheci o Enzo Barone [produtor] e o Khouri. Foram muito corretos, explicando ao meu pai a natureza do projeto e deixando claro que se tratava de um trabalho sério, em que o respeito estava acima de qualquer coisa. A seguir, o próprio Khouri me convidou, sem teste, para 'Amor, Estranho Amor' e me deu um personagem central”.

O ex-ator lembra que havia sempre alguém da produção encarregado de cuidar dele pessoalmente, buscando-o em sua casa, zelando por sua integridade e por sua disciplina no set de filmagem. Quanto ao diretor, Marcelo tem lembranças especiais: “O Khouri era um erudito. Ele conhecia arte, filosofia, tudo. No set, todos aprendiam com ele. Não há diferença entre o erotismo do filme e o ideal estético grego. Ele filmava mulheres como quem admira uma escultura milenar num museu. Isto, ninguém entende”.

Marcelo ainda se lembra do apoio que teve das atrizes Íris Bruzzi e Vera Fischer: “Elas me ensinaram muito. Me ajudaram a entender o personagem e a usar técnicas de interpretação sem perder a naturalidade”. Sobre outra polêmica cena, em que Hugo e Anna recriam a Pietá sob a ótica de Khouri, comenta: “Nessa cena com a Vera, Khouri investigava questões edípicas profundas. É a reconexão do menino com sua mãe. E ela, por sua vez, restaura sua maternidade, como se desejasse trazer o filho de volta ao útero para passar a história dos dois a limpo”.

É a cena com Xuxa, contudo, que Marcelo é sempre instigado a comentar: “Não há a menor hipótese de apologia à pedofilia. Como eu disse, todos eram profissionais. A Xuxa era uma pessoa ótima, uma criança crescida. No set ela nos fazia rir o tempo todo com piadas e trotes. Khouri me apelidou de ‘peste’, mas a Xuxa era um ‘peste ao quadrado’”, relembra aos risos.

Depois de “Amor, Estranho Amor”, Marcelo ainda fez algumas participações em outros filmes, mas sua vida se distanciou do meio. Nos anos 2000, teve breve atuação em vídeos adultos. “Comecei a trabalhar muito cedo. Quando eu tinha 14 anos, meu pai morreu e eu senti que precisava ser o apoio da minha mãe e ajudar em casa. Fiz algumas pontas e participei da produção de 'Forever', também do Khouri. Mas, aos poucos, fui me afastando da arte e me tornei microempresário.”

Porém, ao longo dos anos, sempre que o problema da proibição do filme vinha à tona, o nome de Marcelo voltava à mídia. Sobre a disputa judicial, sua opinião é lúcida: “Creio que ambos estavam certos, a seus modos. O Massaíni viu a possibilidade de lucrar a partir de uma produção na qual ele investiu muito dinheiro. A Xuxa precisava evitar julgamentos equivocados de sua carreira. Os dois tinham suas razões”.

Ele especula que um dos motivos que mais desagradaram a assessoria de Xuxa foi a mudança no pôster original. “A imagem usada nos cinemas era diferente, pode conferir. Xuxa não aparecia no cartaz. Só quando o filme foi para o VHS é que colocaram sua foto nua em destaque”.

Fora do meio cinematográfico, até hoje Marcelo sente o peso do preconceito. “Em meu trabalho, tenho muitas reuniões com clientes, e me irrita profundamente a abordagem invasiva de alguns que querem saber como foi tocar o corpo dessa ou daquela atriz. É algo que não tem cabimento. Pura falta de educação.”

Mesmo assim, ao saber do retorno de “Amor, Estranho Amor” à mídia, Marcelo vê a possibilidade de que o evento resgate sobretudo a carreira de Khouri. “Meu maior orgulho foi estrear não com qualquer outro diretor da época, mas com o Khouri. Óbvio que não quero desmerecer ninguém. Pode haver outros diretores tão bons ou melhores, mas eu não conheço.”

O tabu de “Amor, Estranho Amor” está desfeito. Xuxa Meneghel vem, há alguns anos, mencionando a beleza e o lirismo da obra, e Walter Hugo Khouri, aos poucos, volta a ocupar seu lugar de destaque na errática história cinematografia nacional.

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