Descrição de chapéu Perspectivas

Ideia da tradução como processo mecânico ignora sua dimensão política

Atividade faz parte da pluralidade social do pensamento, afirma autor

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bruno gambarotto

O ofício do tradutor é descrito pelo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) como uma mediação: "Levar o leitor ao autor", "levar o autor ao leitor". É o mesmo que dizer que as circunstâncias da diferença linguística fazem dos tradutores, a um só tempo, leitores e autores ou, mais especificamente, seus leitores e seus autores.

Diante da impossibilidade de chegar a uma língua universal, os tradutores de carne e osso se equilibram entre os polos da incomunicabilidade, e do não entendimento. Nesse percurso, duplicam os extremos na utopia da mútua compreensão, investindo-se da autoria de outrem mediante a responsabilidade de representar, como leitores ideais do texto que vertem, toda uma comunidade linguística. 

Não é difícil entrever a fábula política que se insinua sob os mitos tradutórios. No episódio da Torre de Babel, o poder diversionário de Deus, ameaçado diante do entendimento universal, incide sobre as línguas, não sobre as vontades; assim como, em sentido inverso, o Criador teria supostamente ungido de sua vontade os 72 sábios judeus que, isolados em suas celas, produzem uma só e idêntica versão em grego dos textos sagrados, em sua homenagem, chamada Septuaginta. 

No mundo sublunar, sempre pouco sensível às vontades do Pai, as utopias (e distopias) do entendimento são classicamente substituídas pela dicotomia fidelidade/traição, conhecida de uma tradição política que se estende de César a Dilma Rousseff. E como não ler nas "belles infidèles" o misto de desconfiança e sedução próprios do mundo diplomático? 

homem digita em teclado de computador
A ideia da tradução como processo unicamente mecânico entra em conflito com a dimensão política do ofício - Saul Loeb/AFP

Duas questões surgem dessa exposição: o aspecto ético da atividade, inerente ao jogo de representações de autor e leitor e às negociações semióticas de sentido entre línguas e culturas textuais irredutíveis umas às outras; e seu aspecto contingente, histórico, entranhado na vida material das comunidades a que os tradutores servem. 

Em artigo de setembro, publicado nesta mesma coluna, Christian Schwartz desenvolveu o problema e o histórico da tradução mecânica. 

Há, no esforço de programadores, algo da tentativa de realizar o impossível da equivalência plena: o manancial de textos e traduções digitais transformados em bancos de dados prontos ao trabalho da inteligência artificial remonta aos anseios de busca de um mediador universal que permita a conversibilidade imediata entre línguas. À medida que compromete a autoria e o trabalho dos tradutores —questão que Schwartz desenvolve em seu artigo—, a tradução mediada por algoritmos coloca o ofício sob os mesmos dilemas políticos da hiperconectividade. 

Longe de prescindir da reflexão humana em nome do pragmatismo da comunicação imediata, os algoritmos também eliminam o que na diferença é conflito necessário em um mundo de pluralidades. 

Do mesmo modo que o buscador chinês Baidu eliminou as possibilidades de pesquisa em favor dos interesses políticos de Pequim, seria perfeitamente plausível a exclusão de grupos de textos ou mesmo de sentidos e contextos determinados de ocorrência de palavras, ou a limitação de páginas e textos em que essas buscas fossem feitas.

Já a produção de bancos de dados (quando não públicos ou compartilhados e abrigados em plataformas livres) passa diretamente por questões de propriedade, conceito que a experiência e a história ensinam não ser tão afeito ao livre-arbítrio das sociedades.

Mais do que comprometer a autoria em si, a ideia da tradução como processo unicamente mecânico entra em conflito com a dimensão política do ofício e insinua instâncias de cerceamento da liberdade necessária à negociação em torno da diferença e da contradição inerentes ao contato humano. 

No limite, a possibilidade de apagamento mecânico da figura do tradutor sugere uma inflexão poderosa no modo como temos organizado nossas babéis e lidado com a própria ideia de pluralidade e com a produção de consensos (ou, mais tradutoriamente falando, equivalências). 

Não há mecanização capaz de superar a condição histórica da tradução, a não ser que consideremos tal mecanização (é o que sugiro) igualmente histórica —pois, antes de tudo, é de história que se constitui a relação do leitor com seus textos, bem como as possibilidades de versão, sempre sujeitas à impossibilidade de se estabelecer ou pressupor sentidos estáveis na obra literária. 

As circunstâncias do tradutor são uma das metades de sua arte. Como "leitor-autor", o tradutor realiza seu trabalho em situação, negociando a diferença identificável entre a necessidade de enfrentamento e transformação de condições restritivas, como na chamada tradução estrangeirizante, ou a domesticação da alteridade, em que o outro cultural se acomoda a formas reconhecíveis ou consagradas pela comunidade leitora. 

Mais do que os autores em si e sua importância e interesse, são os leitores que movem o trabalho da tradução: a eles cabe determinar o horizonte de novidades e retornos em que o tradutor transita, como um representante que opera entre a traição e a fidelidade. 

Ainda que o bom acabamento textual de uma tradução permita que ela se coloque como mediadora por gerações, a leitura que a enseja é sempre outra: sentidos outrora ignorados ou mesmo negociáveis podem se tornar, sob novas condições, cláusulas pétreas, assim como a compreensão consagrada em determinado momento perde força em favor de aspectos antes entendidos como secundários. 

Tomemos todo o movimento de revisão dos modos tradutórios do gênero romance no Brasil: não há como ignorar que o fortalecimento da cultura democrática e o reconhecimento institucional de conflitos sociais no país se infundem no interesse maior dos tradutores nas clivagens linguísticas de obras como as de Dickens (1812-1870) ou Dostoiévski (1821-1881), tão importantes para a caracterização social dos personagens. 

A tradução, nesse sentido, pertence a uma história da recepção literária; e, como processo, integra a pluralidade social do pensamento e o princípio do contraditório sob o qual as sociedades democráticas se organizam. 

Paul Schmidt (1899-1970), intérprete de Hitler (1889-1945), dizia que a maior virtude do tradutor diplomático era o silêncio. Não resta dúvida de que muito silêncio se fez na Alemanha do Terceiro Reich e, sem dúvida, muito da fidelidade e da traição —que teria se configurado, caso Schmidt tivesse se recusado a verter para o francês ao general romeno Ion Antonescu (1882-1946) os termos da Operação Barbarossa, que incluíam a produção de um equivalente local dos Einsatzgruppen, unidades responsáveis pela guerra de extermínio em massa no leste europeu— era medido por ele. Schmidt preferiu o silêncio. 

Não saberia dizer se o tradutor alemão, preso e julgado no Tribunal de Nuremberg, lamentaria a mudança de paradigma no que entendia ser a dignidade de seu ofício. Fosse qual fosse sua reação, ela seria fundamentalmente política. A história ensina que o melhor é quando os tradutores —e com eles a diferença e a pluralidade— falam.

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