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Lucia Maria Bastos Pereira das Neves

Dom Pedro 1º, rei trágico, foi salvador em Portugal e déspota no Brasil

Personagem contraditório, soberano ficou dividido entre Rio e Lisboa, liberalismo e absolutismo

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Lucia Maria Bastos Pereira das Neves

Professora titular de história da UERJ e pesquisadora do CNPq, autora de "Corcundas e Constitucionais: a Cultura Política da Independência"

[RESUMO] Personagem contraditório, herói libertador em Portugal e déspota no Brasil, dom Pedro 1º esteve mergulhado nos impasses de sua época, dividido entre as ideias liberais e o absolutismo. Por longo tempo foi retratado aqui apenas como figura autoritária, impulsiva e ignorante, sempre às voltas com aventuras amorosas, mas sua imagem vem sendo revista de forma mais nuançada, com destaque para sua formação intelectual, seu talento musical e sua compreensão do papel moderno do chefe de Estado.

Promovidas pelos militares, as comemorações do sesquicentenário da Independência, em 1972, trouxeram de volta ao Brasil as cinzas de Pedro 1º. Revestida a imagem do herói com algo de religioso, a antiga residência real no Rio de Janeiro expôs a relíquia. Em seguida, os despojos peregrinaram por todo o território nacional até alcançar o Museu do Ipiranga, onde ficaram depositados. O longo percurso cívico mostrou-se um sucesso de público. Faltava, porém, o coração.

Este, a pedido do próprio imperador em vida, permanecera na igreja da Lapa, no Porto, em Portugal. Nos dias que correm, às vésperas dos 200 anos da Independência, discute-se o controvertido retorno temporário desse coração. O corpo dividido aponta para as ambiguidades da figura de Pedro 1º: déspota entre nós, tornou-se, após a abdicação de 1831, o fundador do liberalismo português.

Nascido em 12 outubro de 1798, ele morreu, com quase 36 anos, em 24 de setembro de 1834, no mesmo quarto do Palácio de Queluz, em Portugal, cujos ornamentos e pinturas aludiam às aventuras de Dom Quixote, o personagem de Cervantes.

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Tela "Primeiros Sons do Hino da Independência" (1922), de Augusto Bracet, mostra dom Pedro 1º, ao piano, e Evaristo Veiga compondo o hino, em 1822 - Romulo Fialdini Romulo Fialdini/

Filho segundo de dom João com Carlota Joaquina, Pedro de Alcântara (seguido de outros 15 nomes) tornou-se herdeiro do trono, em 1801, quando morreu o irmão mais velho. Em 1807, deixou Lisboa com a família real e passou a viver no Rio de Janeiro.

Educado na América, não chegou a ter uma formação adequada à condição de futuro rei. Apesar disso, lia, falava e escrevia o francês, entendia o inglês, conhecia os sermões do padre Antônio Vieira, obras de Burke e de Benjamin Constant e até apreciava autores clássicos em latim, como atesta uma relação de livros da Biblioteca Real em seus aposentos.

Na tradição da dinastia Bragança, era apaixonado por música, revelando considerável talento nas diversas composições que deixou, em que se destacam os hinos da Maçonaria, da Independência do Brasil e, para Portugal, o da Carta, considerado até 1911 como o Hino Nacional de lá. Não foi, portanto, o semianalfabeto que alguns imaginaram.

Espírito irrequieto e ardente, gostava de viver ao ar livre e, mais tarde, de frequentar as tavernas da cidade, disfarçado como cidadão comum. Em uma dessas incursões noturnas, conheceu Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, que se tornaria seu secretário e fiel amigo.

Em 1817, como futuro herdeiro do trono português, Pedro casou-se com Leopoldina, arquiduquesa austríaca, a fim de consolidar a aliança entre as duas monarquias. Dessa união, nasceram nove filhos, quatro dos quais não chegaram à idade adulta.

Se as aventuras amorosas não cessaram, as murmurações na Corte cresceram a partir de meados de 1822, quando conheceu Domitila de Castro, a futura marquesa de Santos.

O romance passou a afetar a vida familiar e o comportamento político do monarca, embora, de seus diversos frutos, apenas Isabel Maria de Alcântara Brasileira tenha sido legitimada e elevada, como duquesa de Goiás, à mais alta dignidade da nobreza brasileira. Três anos após a morte de Leopoldina, o contrato de casamento de Pedro com dona Amélia, uma das mais belas princesas da Europa, exigiu o fim do relacionamento com Domitila em 1829.

Dom Pedro estreou na vida política em 26 de fevereiro de 1821, com a eclosão no Rio do movimento constitucionalista. Habilmente, ele evitou a pretendida implementação da Constituição espanhola e a formação de uma Junta Governativa de nomeação popular.

Em abril, dom João 6º partiu para a Europa, deixando-o regente do Brasil, com amplos poderes. Contudo, faltavam recursos. O tesouro seguira para Portugal, e as províncias opunham-se ao envio da arrecadação dos impostos, pois o Rio perdera o prestígio de sediar a Corte do reino.

Ao longo do segundo semestre de 1821, as notícias das discussões nas Cortes de Lisboa tornavam cada vez mais claros os objetivos do movimento liberal português. Pretendia submeter o monarca ao controle do Congresso e restabelecer a supremacia europeia sobre o restante do império.

Dom Pedro hesitou: ou conservava a sucessão ao trono, cujas atribuições julgava tolhidas pelos deputados, ou construía no Brasil um império de acordo com suas concepções políticas, em que assembleias soberanas não tinham lugar. Aproximou-se, então, da facção mais moderada e experiente da elite brasileira.

Em geral, formavam essa elite aqueles indivíduos que haviam frequentado a Universidade de Coimbra, em Portugal, exercido funções na administração e que partilhavam a ideia de um único império nas duas margens do Atlântico.

No início de 1822, com o Dia do Fico, Pedro optou por permanecer no Brasil, repudiando a exigência das Cortes para que retornasse a Portugal. Justificava a atitude rebelde ao considerar o Congresso como responsável por reduzir seu pai ao papel de mero servidor do Poder Legislativo, argumentando que defendia os direitos inerentes à Coroa portuguesa e, sobretudo, aqueles do Brasil.

Com isso, deixava de ser um usurpador do poder, à maneira dos libertadores da América espanhola, e passava a reunir em si a autoridade legítima de herdeiro da dinastia de Bragança.

A partir daí, as decisões que tomou não pretendiam conduzir a uma ruptura nem descartavam de todo a proposta de uma monarquia que mantivesse unidas as duas coroas. Mais que tudo, visavam evitar o esfacelamento do imenso território, ao assegurar um centro comum de poder no Rio de Janeiro.

Desse momento em diante, decisões tomadas de um lado e de outro do Atlântico só fizeram aprofundar o desentendimento. Por um lado, havia a insatisfação de Portugal, degradado à condição de colônia; por outro, o Brasil temia perder as vantagens que adquirira desde 1808.

Nesse sentido, o Brasil declarou inimigas todas as tropas portuguesas que desembarcassem por aqui sem consentimento, concordou em convocar uma Assembleia Constituinte, publicou manifestos que exaltavam os laços de fraternidade entre os integrantes do Império português e em que a palavra independência aparecia no sentido exclusivo de autonomia política, sem implicar rompimento total.

Entretanto, para a maioria dos principais atores, a separação, embora parcial, já estava consumada. Assim, noticiado apenas em breve comentário no jornal fluminense O Espelho, em 20 de setembro, o célebre Grito do Ipiranga, proferido no 7 de setembro, encontrou pequena repercussão entre os contemporâneos.

Por outro lado, na ótica da época, foi a grande festa cívica da aclamação de dom Pedro como imperador constitucional do Brasil, em 12 de outubro, com ampla participação da população nos festejos e reconhecimento das câmaras municipais, que estabeleceu os fundamentos do novo Império.

Sem abrir mão da possibilidade de futuro governo dual sobre o conjunto dos domínios portugueses, dom Pedro soube explorar, daí em diante, as rivalidades no interior das elites brasileiras para assegurar que o governo central no Rio definisse uma identidade para o Império, de modo a obter credibilidade tanto interna quanto externa.

Na linguagem do liberalismo, que prevalecia, isso significava o estabelecimento de uma Constituição. Todavia, os rumos dos trabalhos da Assembleia Constituinte, reunida em junho de 1823, deixaram o imperador insatisfeito, por pretenderem sobrepor a soberania da nação a seu poder pessoal.

Dom Pedro dissolveu-a pelas armas em novembro, mas, em ato característico de sua personalidade, em 25 de março de 1824 outorgou a primeira Constituição do país, que mandara redigir por um conselho de Estado e que fora referendada pela maioria das câmaras municipais. Tratava-se de uma Constituição, por conseguinte, que não emanava da representação da nação, mas vinha concedida pela "generosidade do soberano".

De um lado, portanto, seu reinado não ignorou práticas autoritárias, sempre que seus objetivos políticos se mostrassem contrariados. De outro, percebeu a importância do conhecimento, da imprensa e da nascente opinião pública.

Em função disso, soube recorrer ao escrito a favor do regime e de sua imagem: mandou divulgar proclamações oficiais, publicou curiosas intervenções como polemista nos jornais e subvencionou publicações que serviam a seu governo.

Contundente, criticava os defensores da democracia e aqueles que não haviam aderido à Independência e a seu governo, os "pés-de-chumbo", propondo-se a derretê-los "a cacete". Talvez com o propósito de amedrontar os proprietários de escravos, afastando-os dos liberais mais radicais, atribui-se-lhe uma carta de 1823, em que defendeu o fim do tráfico dos africanos.

Por tais atitudes, Pedro 1º até pode ser considerado um liberal, ainda que jamais um democrata. O exercício do governo, apesar dos poderes que detinha pela Constituição, revelou-se cada vez mais difícil a partir de 1826, quando se reuniu a primeira Assembleia Legislativa, dominada pelos liberais.

Desgastado pela independência da Cisplatina, o atual Uruguai, em 1828, e privado dos conselhos de dona Leopoldina, que falecera em 1826, além de ter a atenção dividida, após a morte do pai, entre a situação no Brasil e os problemas sucessórios em Portugal, ele não soube conviver com a atividade parlamentar regular.

Sentia-se mais à vontade no espaço privado de poder, típico do Antigo Regime, formado pela Corte e ocupado por conselheiros e favoritos de origem predominantemente portuguesa. Em um ambiente cada vez mais hostil a Portugal, estimulou, assim, a desconfiança de tramar a reincorporação do Brasil à antiga metrópole. Diante das pressões, abdicou ao trono em 7 de abril de 1831, em favor do filho, o também Pedro de Alcântara, mas nascido no Brasil, o futuro Pedro 2º.

Afastado no Brasil como soberano intransigente, autoritário e, sobretudo, português, dom Pedro cruzou novamente o Atlântico a fim de resgatar a coroa da filha, usurpada por dom Miguel, seu irmão absolutista. Em 1832, partiu dos Açores para o Porto, retomando a violenta guerra civil em curso.

Com a derrota dos miguelistas em maio de 1834, Pedro restaurou a Carta Constitucional, que havia outorgado em 1826 ainda como Pedro 4º de Portugal, e, depois de abdicar da segunda coroa, assegurou o reconhecimento da filha como a rainha dona Maria 2º. Como resultado, ao morrer, ainda em 1834, dom Pedro assumiu o lugar de salvador da pátria no imaginário português, responsável pela vitória do liberalismo em Portugal.

Na perspectiva brasileira, por longo tempo considerado ignorante, sem caráter e absolutista, a historiografia o depreciou. Pedro 2º, o filho, foi o primeiro a tentar reabilitá-lo. De fato, embora ainda mesclasse a percepção ilustrada a concepções absolutistas do Antigo Regime, por inspiração napoleônica, ele soube compreender o papel moderno do chefe de Estado como agente e árbitro de vontades políticas.

Homem de seu tempo, nem plenamente liberal nem plenamente absolutista, português e brasileiro, Pedro 1º assumiu a dimensão trágica de uma personagem byroniana nos dois lados do Atlântico.

Este texto integra série Perfis da Independência, que destaca nomes relevantes —muito conhecidos ou não— do período da emancipação do Brasil em relação a Portugal. O texto sobre a imperatriz Leopoldina deu início à série em fevereiro deste ano, seguido dos artigos sobre Hipólito da Costa, o aventureiro escocês Thomas Cochrane, Bárbara Pereira de Alencar, revolucionária e primeira presa política do Brasil, José Bonifácio, patriarca da Independência, e Urânia Vanério, autora de panfleto pró-Independência aos 10 anos, entre outros nomes.

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