Filósofo investiga a mente dos polvos para entender a consciência humana

Inteligência surpreendente dos cefalópodes é objeto de estudo de Peter Godfrey-Smith, autor de 'Outras Mentes'

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[RESUMO] Filósofo australiano tenta entender os mistérios da consciência humana a partir da inteligência surpreendente dos cefalópodes.

 

Nossa ignorância sobre vida marinha só não é mais vasta que o próprio oceano. Uma grande injustiça, porque sem ela não existiriam organismos inteligentes na Terra e, portanto, o filósofo mergulhador Peter Godfrey-Smith não teria como investigar o que os polvos têm a nos elucidar sobre a origem da consciência, como se propôs no livro “Outras Mentes” (Todavia).

Antes da consciência, porém, a ignorância. Exemplo: num restaurante popular em Jerez de la Frontera (Espanha), anos atrás, deparei com o menu escrito à mão num caderno de espiral relacionando comidas cujos nomes eu desconhecia. Uma delas era “choco”.

O garçom, idoso e impaciente com os turistas ignaros, repetia sem parar que chocos são... chocos. “Tiene patitas”, era o máximo que se dispunha a explicar. Um cliente compadecido desenhou no guardanapo algo parecido como uma lula, mas as tiras grossas e brancas que serviram pareciam saídas do manto de um molusco gigantesco.

Ao abrir “Outras Mentes”, duas décadas depois e logo na página 13, deparei-me de novo com o choco. Graças ao autor australiano, travei então conhecimento com mais do que seu sabor: “Chocos são parentes dos polvos, porém mais próximos da lula. Os três —polvos, chocos e lulas— são todos membros de um grupo chamado cefalópodes [... e] têm outra coisa em comum: seus sistemas nervosos grandes e complexos”.

Novo alarme soou na memória. Lembrei-me do trecho bizarro de uma entrevista com outro filósofo australiano, Peter Singer, em que o autor de “Libertação Animal” informava ter revisado a linha de corte que traçava entre os bichos que se permitia ou não comer.

Até aquela altura, Singer recusava-se a ingerir carne de vertebrados, dos peixes e rãs aos bovinos e baleias. Considerava-os capazes de “senciência”, ou seja, seriam organismos capazes de perceber-se como seres vivos que experimentam dor, talvez medo, e não meros autômatos imersos no fluxo indistinto da natureza. Por causa dos polvos, entretanto, recuou a fronteira ético-evolucionária: “Eles são inteligentes demais”.

Godfrey-Smith estaria de acordo com a avaliação. Com efeito, o livro todo se constrói para desdobrar esse argumento. E vai além, buscando nas semelhanças e diferenças entre sistemas nervosos —vertebrados vs. cefalópodes— pistas para entender melhor a gênese da misteriosa faculdade da consciência. 

Seu ponto de partida não foi a história natural nem a neurociência relacionada com polvos, e sim a experiência como mergulhador. Professor de história e filosofia da ciência na Universidade de Sidney, em suas incursões debaixo d’água ele já havia encontrado polvos e se intrigava com seu comportamento, que lhe parecia movido por curiosidade.

Um interesse, aliás, mútuo, que Godfrey-Smith não hesita em descrever como envolvimento. Esse contato íntimo com os moluscos floresceu a 15 metros de profundidade, numa pequena área do leste da Austrália que ele e o amigo Matthew Lawrence apelidaram de Polvópolis, em que dezenas de indivíduos viviam em proximidade, algo raro entre esses animais.

Era comum, ali, um polvo aproximar-se do mergulhador e estender na sua direção, até tocá-lo, um dos oito tentáculos (apêndices que um garçom desavisado poderia descrever como “patitas”; os chocos têm dez deles). Godfrey-Smith conta que seria uma forma de verificar, com os sensores gustativos e táteis das ventosas, se o bicho humano era comestível ou não. Alguns mais ambiciosos tentavam arrastar o organismo várias vezes maior para a toca.

O filósofo segue duas trilhas para desvendar alguns mistérios dos polvos e da consciência. A primeira delas acompanha a evolução ao longo de centenas de milhões de anos para combater a noção de que a inteligência desses cefalópodes possa ser esclarecida por meio de paralelo com a nossa.

O ancestral comum desses dois ramos remonta a uns 600 milhões de anos atrás e foi provavelmente um ser muito primitivo, desprovido de qualquer centelha, talvez um verme marinho. Só muito depois sistemas nervosos complexos teriam surgido sobre a Terra, mais de uma vez, de modo independente. Não só duas, mas pelo menos três vezes, visto que chocos e polvos tampouco contam com um ancestral comum com algum fiapo de inteligência.

Nesses três episódios de inovação evolutiva, tratava-se de satisfazer a necessidade crescente de coordenar conglomerados cada vez mais complicados de células. As sinalizações necessárias para isso deram um salto com redes de neurônios, que usam potenciais elétricos para transmitir sinais de forma bem mais rápida e eficiente que a mera difusão de moléculas entre células. A sensação de dor seria um dos modos mais antigos dessa concertação.

A segunda trilha aberta por Godfrey-Smith parte da estrutura do sistema nervoso dos polvos. Eles têm neurônios espalhados pelo corpo, com grande concentração nos oito braços, os quais não se acham o tempo todo sob controle do cérebro central. Em muito do que fazem, os tentáculos estariam “raciocinando” por conta própria.

Em certo nível, algo assim acontece também em seres humanos. Um professor de redação no ensino médio dizia que dirigir um automóvel era como pensar com os pés. Mas a semelhança é aparente, porque no nosso caso esse processamento passa, sim, pelo cérebro, ainda que não de forma consciente.

Assim prossegue “Outras Mentes”, expondo —e solucionando quando possível— os vários mistérios que envolvem a emergência da mente na evolução. Mas sempre de maneira muito honesta, apontando com clareza quando inexistem explicações para enigmas ou quando os modelos explicativos não passam de especulações.

Uma das coisas que se compreendem mal é a curta duração da vida dos polvos, de 2 a 4 anos, dependendo da espécie. Sistemas nervosos complexos como o seu consomem muitos recursos do organismo; no caso do cérebro humano, um quarto da energia obtida dos alimentos.

Por um raciocínio linear, todo esse investimento serviria para prolongar a vida do organismo. É o que se observa em primatas, papagaios e golfinhos —mas não nos cefalópodes. Resta muita coisa, ainda, para se entender nos polvos.

“Se quisermos compreender outras mentes, as mentes dos cefalópodes são as mais outras de todas”, escreve Godfrey-Smith. “Eles são, provavelmente, o mais perto que chegaremos de um alienígena inteligente.”

Ao final do livro, o filósofo emerge das correntes profundas da história natural para fazer um chamado ético em defesa dos oceanos. A mente evoluiu no mar, ensina. “Todos os estágios iniciais ocorreram na água: a origem da vida, o nascimento dos animais, a evolução dos sistemas nervosos e dos cérebros e o aparecimento de corpos complexos que fizeram valer a pena ter cérebro.”

Não disse, mas poderia ter dito: seguir poluindo o mar como fazemos só comprova que a nossa ignorância chega a ser abissal.


Marcelo Leite é colunista da Folha, doutor em ciências sociais pela Unicamp e autor dos livros “Promessas do Genoma” e “Ciência – Use com Cuidado”.

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