Há elo direto entre luta dos negros e dos LGBTs, diz Angela Davis

Últimas décadas ensinam que ações coletivas podem produzir transformação radical, afirma ativista, que vem ao Brasil

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Angela Davis

[RESUMO] Embora ataques a comunidades LGBTs persistam ainda hoje, êxito da luta por direitos civis nas últimas décadas ensina que ações coletivas podem produzir transformações radicais, diz autora em texto que integrará o livro ‘O Significado da Liberdade’, a ser lançado em 2020. Angela Davis estará em São Paulo em 19 de outubro para uma conferência no seminário internacional “Democracia em Colapso?”, realizado em parceria entre a editora Boitempo e o Sesc São Paulo.

Ao nos depararmos com todos os problemas que assolam nossas vidas e o mundo, da assim chamada guerra ao terror às diversas manifestações de racismo, tanto as sutis quanto as violentas, até os ataques a comunidades lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras, passando por investidas contra nossos direitos a educação e pela negação de atendimento de saúde para números cada vez maiores de pessoas, precisamos de esperança, precisamos de imaginação, precisamos de luta, precisamos perceber que a mudança é possível.

E como sabemos que a mudança é possível? É possível pois, por mais horrendas que as coisas possam parecer hoje, vivemos em um mundo moldado pela transformação. Por mais difíceis que sejam as condições para as pessoas de cor nos Estados Unidos, elas certamente seriam piores se as pessoas comuns não tivessem aprendido a se identificar com comunidades de luta, se não tivessem aprendido a imaginar um mundo diferente e melhor.

Quarenta anos atrás, Malcolm defendeu que expandíssemos nossa perspectiva dos direitos civis para a dos direitos humanos. Contudo, ainda não desenvolvemos um discurso que nos permita identificar e construir movimentos contra as extensas violações de direitos humanos cometidas neste país. 

Agora, gostaria de me debruçar brevemente sobre duas das mais salientes questões de direitos civis que mobilizam comunidades LGBTs e seus aliados. A primeira é a questão da igualdade de casamento; a segunda, a igualdade no serviço militar. 

Ao refletirmos sobre o argumento formal a respeito de igualdade de gênero e de sexo no serviço militar, devemo-nos perguntar por que estamos inclinados a nos apoiar na lógica abstrata —igualdade entendida como acesso igual de negros, mulheres, gays e lésbicas ao Exército.

Eu jamais sugeriria que essas lutas em torno de igualdade formal não tenham sua importância, mas é igualmente importante considerar aquilo a que os grupos sub-representados demandam acesso. 

Eu pensaria que tais demandas “democráticas” também teriam que considerar o caráter profundamente antidemocrático da instituição. Melhor seria o direito igual de recusa do serviço militar —para homens brancos, mulheres brancas, mulheres e homens negros, gays e lésbicas de todos os contextos raciais e étnicos. 

Os debates em torno do casamento gay requerem uma abordagem mais complexa. As estruturas de heteronormatividade e as diversas violências que essas estruturas e seus discursos implicam não desaparecem necessariamente quando a sexualidade dos participantes é outra. 

Não estou sugerindo que não devamos reivindicar o direito de que gays e lésbicas possam incorrer nessa prática, mas também precisamos refletir sobre a própria instituição. Trata-se de uma instituição econômica: ela diz respeito à propriedade, não a relações humanas, tampouco relações íntimas.

O que significa reivindicar o direito igual ao casamento sem reconhecer o papel que ele desempenhou na reprodução de desigualdades de raça e gênero? No contexto da democracia burguesa, o casamento sempre foi uma instituição machista, racista e heterossexista que diz respeito principalmente à acumulação e distribuição de propriedade.

Pessoas escravizadas não podiam casar, e quando surgiam configurações familiares que não correspondiam ao padrão da família nuclear, implementavam-se ideologias racistas complexas a fim de consolidar ainda mais as hierarquias raciais. Vivemos com essas ideologias hoje. 


Angela Davis é escritora, ativista social e professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia (EUA). Autora de “Mulheres, Raça e Classe” (2016) e “Mulheres, Cultura e Política (2017), ambos publicados pela editora Boitempo

Texto inédito escrito a partir da transcrição da fala de encerramento de Angela Davis na Midwest Bisexual Lesbian Gay Transgender Ally College Conference, realizada na Universidade de Illinois em 2008. Tradução de Artur Renzo.

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