Descrição de chapéu
Guilherme Coelho e Francisco Gaetani

Com nova sensibilidade, arte pode ressignificar gestão pública no país

Reforma precisa superar vergonha de trabalhar para o governo e criar cultura de reconhecimento

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Guilherme Coelho

Diretor de cinema e empreendedor social, é fundador da Matizar Filmes e República.org

Francisco Gaetani

Professor da FGV e presidente do conselho de administração do República.org, foi presidente da Enap (Escola Nacional de Administração Pública) e secretário-executivo dos Ministérios do Planejamento e do Meio Ambiente

[RESUMO] Para autores, transformações na estrutura administrativa do setor público do país devem motivar e reconhecer servidores e, nesse contexto, experiências artísticas no governo, como residências, podem impulsionar o engajamento com um Estado efetivo.

*

Em 1977, Mierle Ukeles tinha 38 anos, um mestrado, um manifesto artístico e três filhos, mas foi ao se convidar para ser artista residente no Departamento de Limpeza Urbana da cidade de Nova York que ela inscreveu seu nome na história da arte. A prefeitura topou, e ela ganhou uma pequena sala e nenhum salário.

Até hoje, aos 81 anos, ela mantém o cargo inventado. Sua obra artística foi recentemente incorporada à coleção do Smithsonian, na capital dos Estados Unidos, e é construída em torno do conceito de arte de manutenção. Por meio dele, Ukeles relaciona o processo artístico com ocupações essenciais, porém pouco valorizadas, como o trabalho de mulheres em suas próprias casas e algumas profissões no setor público.

A partir de 1975, Nova York viveu uma grave crise fiscal, agravada pela debandada de moradores mais ricos para os subúrbios. Em 1977, houve dois apagões históricos e, em seguida, a cidade passou por uma crise de segurança pública que marcou a década de 1980. Mierle Ukeles era a artista certa no lugar certo.

Exposição no museu Whitney, em Nova York, EUA - Spencer Platt - 3.set.20/Getty Images/AFP

Sua primeira intervenção como artista residente no serviço público foi encontrar individualmente com os 8.500 profissionais responsáveis pela coleta de lixo da cidade —e filmar. Ela apertava suas mãos e lhes agradecia, dizendo: “Obrigada por manter Nova York viva”. O processo levou 11 meses e aconteceu nas ruas da cidade, durante o trabalho desses profissionais.

Essa performance fala muito sobre perfomance. Não sobre o suporte artístico em si, mas sobre "performance", em inglês, significando desempenho. E desempenho, entrega e efetividade são os objetivos finais na gestão, pública ou privada.

Ukeles investiu capital simbólico, “deu moral” e agradeceu a quem, em sua visão, merecia. Ela usou reconhecimento, que era sua única ferramenta disponível e, muitas vezes, o melhor instrumento para motivar pessoas no trabalho. Por vezes, reconhecimento é até mais efetivo que bonificações em dinheiro, segundo um estudo da McKinsey de 2009.

Aqui no Brasil, as artes podem ter o papel de ressignificar a conversa pública sobre o Estado. Há dois anos, acontece a Residência Artística do Setor Público (RASP), inspirada em uma iniciativa da Prefeitura de Nova York que, em 2015, institucionalizou o processo inaugurado por Ukeles 40 anos antes.

O programa brasileiro propõe que artistas se dediquem, por meio de sua arte, a órgãos públicos por um período de 18 meses. Tatiana Altberg trabalhou com uma equipe da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro; Cadu com professores de teatro na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro; Daniel Lima está atualmente desenvolvendo um trabalho na 2ª Vara da Infância e da Juventude de São Paulo, e Eleonora Fabião em breve colaborará transversalmente com órgãos da Prefeitura do Rio de Janeiro.

A arte dessa turma poderá deslocar nosso olhar para o Estado e abrir nossa cabeça.

O momento não poderia ser melhor. Em meio à Covid-19, olhamos apreensivos para prováveis mudanças significativas nas relações entre Estado, sociedade e economia. O assunto reforma administrativa voltou à baila. Embora o termo reforma não seja o melhor, dada sua conotação ideológica, tal esforço deveria ser uma agenda permanente de melhoramento do Estado, com participação de uma população atenta.

O assunto é tão potente que merece algo como uma frente ampla por um Estado efetivo. As necessidades são evidentes e urgentes, e as partes interessadas somos todas nós. Temos a chance, a obrigação e a responsabilidade de realizar uma transformação social no nosso país por meio da atualização do Estado brasileiro. Devemos ser ambiciosos e otimistas.

Pois o único consenso hoje é que é governos importam. Bons governos salvam vidas. Governos responsivos aos desafios, governos respeitados e responsáveis estão fazendo a diferença no combate à Covid-19.

O futuro provavelmente nos reserva outras pandemias zoonóticas. E a maior crise de todas, que é a climática, está acontecendo. Como vemos, pessoas e empresas têm um papel nessas crises, mas a nossa melhor chance como indivíduos é a boa governança pública. Essa deve ser a nossa luta amada.

Boa governança pública é essencial para a democracia. Governos que não entregam o que é combinado geram crises de representatividade, o que diminui a confiança e o sentido de propósito comum.

O Brasil sairá muito endividado desta crise da Covid-19, e ainda assim precisaremos de capacidade fiscal para investimentos públicos em outras áreas. Há uma justificada e permanente preocupação com a qualidade do gasto público brasileiro.

A multiplicação de escândalos por todo o país na compra de equipamentos e de instrumentos destinados ao enfrentamento do coronavírus é um exemplo das nossas precárias capacidades administrativas.

Governos, no entanto, não são apenas uma questão fiscal —e cada vez mais se tornam uma questão essencial. As transformações que devemos fazer nos governos no Brasil não são prioritariamente sobre redução de gastos. Elas são importantes demais para serem tratadas apenas pela linguagem econômica.

Eficiência, por exemplo, não é uma palavra precisa nessa discussão. O que precisamos dos governos brasileiros não são ganhos apenas de eficiência, incrementais, mas uma verdadeira mudança de linguagem que traga avanços estruturais. Uma transformação em direção a um setor público eficaz, presente e competente.

Se governos importam, importam ainda mais as pessoas que nele trabalham. Governos operam, quase sempre, como parte do setor de serviços de uma sociedade. E o setor de serviços depende, acima de tudo, das pessoas que nele servem, diferentemente de outras indústrias, cujas principais variáveis podem ser, por exemplo, o percentual de teor de ferro de um minério, o nível de chuva em um ano ou a cotação de uma moeda.

Até o século 19, o maior ativo de uma empresa, igreja ou país eram suas terras. No século 20, passou a ser seu maquinário. Já há algumas décadas, e isso é cada vez mais evidente, o maior ativo de uma organização são as pessoas que nela trabalham. Gente boa faz toda a diferença. Por isso, o centro de uma discussão sobre o Estado é obrigatoriamente uma discussão sobre gestão de pessoas.

Isso quer dizer, especificamente, definir e descrever melhor as funções de cada um; recrutar com foco nas habilidades necessárias para tais funções; embarcar a quem se seleciona; alinhar pessoas e equipes para que trabalhem com sentido de propósito e com satisfação pessoal; e definir objetivos comuns —que sejam objetivos. Para então reconhecer aquelas que mais contribuem e que mais se dedicam, seja individualmente ou em grupo.

A oportunidade em criarmos uma cultura de reconhecimento no setor público no Brasil vem justamente do fato de que ela não existe. Muitas vezes, em várias carreiras, há o contrário: uma cultura da vergonha de servir e de trabalhar para governos. Ao mudarmos isso, daremos uma das mais importantes contribuições para nossas vidas em sociedade.

Gente excelente atrai gente excelente. E o resultado do trabalho de profissionais públicas motivadas, investidas de capital simbólico, realizadas pessoalmente, são melhores serviços e bens públicos para toda a sociedade. Investimento em capital humano em governos tem um multiplicador relevante e gera externalidades positivas —para usar dois conceitos de economia.

Alemanha, Austrália, Dinamarca, Finlândia, Japão e Portugal são exemplos de países admiráveis, não apesar do Estado, mas em grande parte devido a ele. A Austrália realiza desde os anos 1970 ajustes constantes em suas normas e instituições de capital humano em governos. O país fez uma escola de governo com a Nova Zelândia, e teve até este ano o crescimento econômico ininterrupto mais longevo da história (registrada) entre todos os países, 27 anos.

Portugal, que após a crise de 2008 era um dos países em pior situação econômica da Europa, vem realizando reformas em gestão de pessoas que são parte integral de sua recuperação econômica e social. Nos últimos dez anos, o governo simplificou suas carreiras, criou processo de seleção de dirigentes e investiu como nunca em políticas de desenvolvimento para seu profissionalismo público.

Se muitas de nós nos perguntamos, perplexas, o que vem acontecendo com a coisa pública, a tal "res publica", nos últimos 20 anos, a resposta deve passar antes de tudo pelo cultivo de uma nova sensibilidade, que nem mesmo é nova. É na verdade a redescoberta de algo perdido ou esquecido, como na definição pelo dramaturgo Eugène Ionesco para o que é novo.

Mierle Ukeles nos inspira a retomarmos o engajamento público que ensaiamos aqui no Brasil durante a redemocratização dos anos 1980. Devemos retornar inteiras ao espaço público, que já foi (pois sempre o é) a ágora das nossas vanguardas da década de 1950 e 1960, seja na arquitetura, na música, na literatura, no teatro ou no cinema, antes da desmobilização cívica e institucional causada pelo golpe militar de 1964.

Essa nova sensibilidade envolve um “abraçaço” em um Estado efetivo, que nos represente democraticamente, que seja respeitado, responsivo aos desafios de cada momento e responsável em encaminhá-los.

As transformações administrativas que serão feitas no Brasil nos próximos três anos precisam fazer o que Mierle Ukeles fez em 1977: ir ao encontro de quem trabalha em governos. Ouvindo, organizando, celebrando, motivando.

E devemos ficar de olho na Tatiana Altberg, no Cadu, no Daniel Lima, na Eleonora Fabião e nos próximos artistas residentes em órgãos públicos brasileiros. A eles confiamos uma vanguarda da nossa democracia.

Erramos: o texto foi alterado

O sobrenome de Eleonora Fabião foi grafado incorretamente. O texto foi corrigido.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.