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Ilona Szabó de Carvalho e Carolina Taboada

Descriminalização de drogas na eleição dos EUA contrasta com falta de avanços no Brasil

Regulação da maconha e outras substâncias em estados americanos aponta fracasso do proibicionismo

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Ilona Szabó de Carvalho

Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “A Defesa do Espaço Cívico”

Carolina Taboada

Pesquisadora do Instituto Igarapé

[RESUMO] Autoras sustentam que a aprovação da descriminalização da maconha e de outras substâncias nas eleições americanas deste ano evidencia o fracasso da guerra às drogas. O Brasil, no entanto, ignora resultados encorajadores da regulação em outros países e vê narrativas sem base em evidências ganhar terreno.

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As eleições americanas fizeram história —e não só por trazerem uma importante derrota do populismo autoritário. O pleito também representou um avanço histórico para a derrocada da guerra às drogas no país que a criou.

Como sabemos, a política norte-americana influencia os rumos de leis, políticas públicas e líderes em todo o mundo. Foi assim mesmo antes de, em 1971, Richard Nixon impulsionar uma política de drogas exclusivamente repressiva.

O posicionamento e a liderança do governo dos Estados Unidos na segunda metade do século 20 foram fundamentais para a aprovação das convenções da ONU sobre entorpecentes em 1961, 1971 e 1988, centradas na repressão às drogas e na abstinência como objetivo final. O país também foi crucial para a sangrenta política de segurança que passou a assolar a América Latina.

Analistas no mundo todo já debatem o que mudará em seus países com a gestão de Joe Biden e Kamala Harris, mas as urnas americanas trouxeram ainda uma outra reviravolta: a aprovação de reformas progressistas da política de drogas em todos os estados em que foram propostas.

Quatro deles —Arizona, Montana, Nova Jersey e Dakota do Sul— aprovaram a regulação do comércio e do consumo de maconha para uso adulto. Agora essa é a realidade em 15 estados e no Distrito de Colúmbia. Mississipi e Dakota do Sul se juntaram a ao menos 33 estados que preveem o uso medicinal da maconha e seus derivados. Em Washington (DC), a população votou pela descriminalização de plantas com efeitos psicodélicos.

A virada na política de drogas na Dakota do Sul merece destaque: a decisão nas urnas tornou o estado o primeiro a dar o salto de uma política estritamente proibicionista para a regulação da maconha para uso adulto e medicinal.

A principal quebra de paradigma, contudo, veio do Oregon: 58% da população votou pela aprovação da medida 110, que descriminaliza a posse para uso adulto de todas as drogas, incluindo heroína, cocaína e metanfetaminas.

Importante ressaltar que a produção e a comercialização dessas drogas continuam ilegais: o que mudou é que, agora, o usuário flagrado portando as substâncias não será preso ou processado criminalmente. O estado possui alguns dos mais altos índices de abuso de drogas legais e ilegais nos Estados Unidos.

A virada na política de drogas no Oregon deve ter efeitos enormes também no sistema prisional. Segundo a Comissão de Justiça Criminal do estado, a medida 110 deve reduzir em quase 90% as condenações por porte de drogas, considerando os dados de 2019 —foram 4.097 no ano, das quais o órgão estima que apenas 378 se manteriam. A medida deve gerar ainda uma redução de 94% nas condenações de pessoas negras e de indígenas.

O estado colocará em prática de forma pioneira o que cientistas e pesquisadores já apontam há anos: encarcerar usuários de drogas não tem impacto positivo na segurança pública, muito pelo contrário.

A vitória da descriminalização é o reconhecimento de que a guerra às drogas fracassou no país que foi precursor dessa abordagem. É também a escolha de uma política voltada para o enquadramento das pessoas com uso problemático no sistema de saúde, não na Justiça criminal.

Os indivíduos flagrados pela polícia com drogas ilegais no Oregon estarão sujeitos a uma multa de US$ 100 (R$ 541) e a passar por uma avaliação completa de saúde em até 45 dias.

No Brasil, a Lei de Drogas (lei 11.343/2006) deu um passo incompleto nessa direção: retirou a pena de prisão para usuários, mas continuou tratando o porte para consumo próprio como um problema de polícia e da Justiça criminal.

Além disso, sua aplicação foi muito diferente de sua intenção inicial. A lei aumentou a pena para tráfico e não estabeleceu critérios objetivos para identificar os usuários. Com isso, a participação dos crimes de drogas nas incidências que levaram à prisão saltou de 15% em 2006 para 28% em 2016 —em 2019 foram 20% do total. Vale ressaltar ainda que 66,7% das pessoas presas são negras.

Os estudos conduzidos no Brasil sobre essas condenações mostram que, assim como no Oregon até poucos dias atrás, estamos prendendo usuários. Segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública), em razão das quantidades de drogas encontradas, 64% das ocorrências de tráfico de maconha no estado do Rio de Janeiro em 2015 seriam consideradas posse na Espanha.

O Instituto Sou da Paz analisou mais de 200 mil ocorrências envolvendo drogas em São Paulo entre 2015 e 2017 e concluiu que 40% dessas foram com usuários.

Se nos EUA a população deu sinais firmes de que não acredita na guerra às drogas, no Brasil seguimos remando para tentar algum tipo de avanço na direção de políticas coerentes com as evidências das últimas décadas.

Tramita no STF desde 2011 um recurso extraordinário que poderia retirar o porte de drogas para consumo pessoal da esfera criminal. O julgamento teve início em 2015 e, após três votos favoráveis, o então ministro Teori Zavascki pediu vista do processo.

Dois anos depois, quando ele morreu, o processo passou para o ministro Alexandre de Moraes, que o liberou para votação em novembro de 2018. Ao longo de 2019, contudo, a retomada da votação foi adiada duas vezes, e ainda não se definiu uma nova data para a sua apreciação.

Também em 2018, a Câmara instaurou uma comissão de juristas para elaborar uma atualização da Lei de Drogas. O grupo apresentou um anteprojeto de lei em fevereiro do ano seguinte, incluindo a descriminalização da posse para consumo próprio e o estabelecimento de quantidades para diferenciar usuários de traficantes —um dos grandes problemas da regulamentação atual, que deveria ser definido conforme padrões de uso de cada droga pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). O projeto de lei 4.565/2019, feito com base nesse trabalho, segue aguardando ser pautado.

Ainda na Câmara, após anos de trabalho e dezenas de audiências públicas em comissão especial criada para tratar do tema, o substitutivo ao projeto de lei 399/2015 foi entregue à presidência da Casa. O projeto, que trata apenas da utilização medicinal da maconha, mantém vedado o uso adulto e o plantio para fins medicinais por pessoas físicas, mas dá passos importantes na regulação da produção farmacêutica nacional e das associações de pacientes, que hoje são apenas duas —no Rio e na Paraíba— e funcionam via liminares da Justiça.

A Anvisa desperdiçou, no ano passado, uma grande chance de modernizar a abordagem sobre maconha medicinal. A tímida decisão do órgão autorizou a entrada de medicamentos com canabidiol nas farmácias do país, mas manteve a proibição do plantio.

Forçando as farmacêuticas a importar os insumos, o valor do remédio que chega ao paciente aumenta substancialmente. Vale lembrar que esse impacto será sentido nas contas públicas, já que o SUS também precisará pagar um valor desnecessariamente alto por esses medicamentos.

No debate público nacional, os sinais não são mais animadores. Após avanços de grupos da sociedade civil em mostrar os resultados encorajadores para a saúde e a segurança pública vindos da descriminalização e da regulação em outros países, voltou a ganhar força uma narrativa sem base em evidências.

Há ainda quem erroneamente afirme, em desacordo com experiências internacionais e estudos científicos, que a descriminalização da maconha pode criar um exército de zumbis nas ruas.

Esperamos que a mudança que se consolida nos EUA por meio das urnas tenha influência positiva por aqui também. Pagamos custos humanos, sociais e econômicos brutais ao insistir em uma política ultrapassada de guerra às drogas que só beneficia o crime organizado. É hora de mudar e pensar sobre como vamos reparar os estragos que essa guerra causou ao longo de décadas.

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