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Fábio Palácio

Morte acidental de diretora por Alec Baldwin escancara precarização na indústria cultural

Disparo no set de filmagem de 'Rust' não foi mero acidente ou resultado de erros individuais

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Placa com indicação do local de filmagem do filme ‘Rust’, em Santa Fé, Novo México Patrick T. Fallon - 29.out.21/AFP

Fábio Palácio

Jornalista, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)

[RESUMO] O disparo, pelo ator Alec Baldwin, de uma arma carregada durante as gravações do filme "Rust", que causou a morte da diretora de fotografia Halyna Hutchins, reflete a degradação das condições de trabalho na indústria do entretenimento, em que tentativas de reduzir custos e acelerar as produções levam a jornadas excessivas dos profissionais e ao desrespeito de protocolos de segurança nos sets.

Na semana passada, um grave acidente com uma arma de fogo durante as gravações de um filme nos Estados Unidos pôs a nu a precarização das condições de trabalho na indústria cultural.

O acidente envolveu o ator Alec Baldwin, que disparou uma arma carregada por engano no set de um filme de ação. O disparo atingiu a diretora de fotografia do filme, Halyna Hutchins, que morreu instantes depois.

A princípio, tudo pareceu mero acidente, mas revelações feitas pela imprensa de Los Angeles mostram que o caso é só a ponta de um incômodo iceberg: a degradação das condições de trabalho dos empregados na indústria do entretenimento.

As chamadas indústrias criativas movimentam hoje grande parcela da produção de bens e serviços. Em meados da década passada, a economia da cultura já movimentava 7% do PIB mundial e era responsável por 6% dos empregos formais. Muitos desses empregos estão ligados à produção cinematográfica.

O cinema foi a primeira arte eminentemente industrial. Podemos perceber isso, desde logo, prestando atenção aos créditos de um filme. Surge ali um verdadeiro batalhão de profissionais que inclui cenógrafos, figurinistas, iluminadores, fotógrafos, câmeras, continuístas, designers gráficos, assistentes de gravação e direção e uma série de outras funções. Eles são os operários da indústria cultural.

Como vivem essas pessoas? Quais são suas reais condições de vida e de trabalho? Muitas vezes isso permanece oculto à maioria de nós, espectadores dos produtos dessa indústria. O acidente ocorrido nas gravações do filme "Rust", no entanto, lança luz sobre a realidade do trabalho na indústria cultural.

O filme era gravado em um set de filmagens no estado americano do Novo México. Ali tem florescido, desde o início dos anos 2000, um importante polo cinematográfico, porém mais modesto que o de Hollywood, em Los Angeles.

O polo do Novo México emprega trabalhadores residentes na região, principalmente nas cidades de Albuquerque e Santa Fé. Os filmes rodados no estado são, em geral, as chamadas produções de baixo orçamento. Os empregados nessas produções trabalham em turnos punitivos. Essa situação tem motivado muitas greves e protestos pela melhoria das condições de trabalho.

Vale lembrar que esse setor também foi profundamente atingido pela pandemia. Um fato que, aliás, aconteceu também no Brasil, levando à aprovação —após muita luta— da Lei Aldir Blanc, que instituiu um auxílio emergencial destinado aos trabalhadores da cultura.

Vale lembrar que o Novo México, embora tenha uma população pequena, possui uma das maiores taxas de pobreza dos Estados Unidos. Isso faz com que a população local, mesmo quando não trabalha diretamente no setor, valorize muito a indústria de filmes, que vem crescendo e é uma alternativa de emprego.

Foi nesse cenário em que, em 21 de outubro, aconteceu a tragédia nas gravações de "Rust", uma trama de faroeste. De acordo com a polícia de Santa Fé, um assistente de direção do filme pegou uma das três armas disponíveis para as filmagens e a entregou ao ator Alec Baldwin, avisando que a arma estava descarregada. Pouco depois, Baldwin apertou o gatilho.

O projétil atingiu a diretora de fotografia Halyna Hutchins, atravessou seu corpo e acertou também o diretor Joel Souza. Halyna morreu.

Nesse tipo de produção, armas de verdade costumam ser usadas, em razão do realismo que elas proporcionam. Isso apesar de muitos técnicos em efeitos visuais dizerem que os benefícios das armas reais não sejam tão grandes e que armas com balas de borracha ou com tiros de festim poderiam ser usadas como alternativa.

Durante as gravações, quem cuida das armas é um profissional chamado armeiro. Nesse caso, havia uma armeira: uma jovem de 24 anos, filha de um profissional experiente, que também trabalhou como armeiro em outras produções.

Os protocolos de segurança indicam que uma arma carregada não devia ter sido entregue ao ator. Portanto, à primeira vista, o acidente pode ter resultado de negligência da armeira ou do assistente de direção ou dos dois.

Segundo o jornal Los Angeles Times, diversas pessoas afirmaram em seus depoimentos que o assistente de produção Dave Halls era um profissional experiente e focado. Uma de suas funções era checar a segurança das armas. Após o acidente, ele disse que não sabia que a arma estava carregada com cinco projéteis. Revelações dos últimos dias dão conta de que ele já havia se envolvido em outro acidentes em trabalhos anteriores.

A jovem armeira Hannah Reed estava em seu segundo trabalho e era inexperiente. Em um podcast feito cerca de um mês antes do acidente, ela disse que não tinha certeza se estava preparada para a função, pois não sabia carregar armas muito bem. Nesse caso, fica a pergunta: por que foi contratada?

Alguns outros detalhes dessa história podem ajudar a responder essa pergunta. Primeiro fato importante: cinco dias antes do acidente, um dublê de Alec Baldwin disparou acidentalmente dois tiros depois de ser informado que a arma não estava carregada.

Esse fato deveria ter sido suficiente para interromper as gravações pelo menos até que uma sindicância fosse concluída. Isso, porém, não foi feito, embora a equipe do filme tenha chegado a enviar mensagens preocupadas à produção, levantando a questão da segurança das armas no set.

O que fica claro é que a inspeção das armas e outros protocolos de segurança —que são praxe nesse tipo de indústria— não eram seguidos pelos produtores. Um membro da equipe de câmeras relatou ao Los Angeles Times que "não havia reuniões sobre segurança. Não havia a certeza sobre se isso poderia ocorrer novamente. Tudo o que eles queriam fazer era correr, correr, correr [com as gravações]".

Além disso, problemas já vinham se acumulando no set havia vários dias. Apenas seis horas antes do acidente fatal, meia dúzia de operadores de câmera e seus assistentes cruzaram os braços para protestar contra as condições de trabalho no filme.

As reclamações da equipe eram sobre o excesso de horas de trabalho, longos trajetos a serem percorridos e atrasos nos contracheques. Um dos membros declarou que o grupo também estava preocupado com a segurança no set.

Contudo, a questão que mais pesava era a distância do local das filmagens. A equipe queria pernoitar em hotéis em Santa Fé, a cidade mais próxima. A produção a princípio se comprometeu com essa demanda, mas depois recuou.

Com isso, boa parte dos trabalhadores, residentes em Albuquerque, mais distante do set, tinha que viajar 160 km todos os dias (80 km de ida, 80 km de volta). Isso irritou os trabalhadores da produção. Eles estavam preocupados que pudesse haver um acidente em um deslocamento tão longo, depois de trabalharem 12 ou 13 horas nas filmagens.

A diretora de fotografia Halyna Hutchins, que terminaria atingida pelo disparo acidental, vinha defendendo condições mais seguras e chegou a chorar quando a equipe de filmagem decidiu parar as gravações reivindicando melhores condições de trabalho.

Os operadores de câmera que cruzaram os braços eram todos sindicalizados na Iatse (International Alliance of Theatrical Stage employees). Este é o forte sindicato dos trabalhadores na indústria teatral e cinematográfica norte-americana.

Quando eles decidiram cruzar os braços, vários membros da equipe que não eram sindicalizados apareceram para substituí-los. Com isso, um dos produtores solicitou aos trabalhadores filiados ao sindicato que deixassem o set e ameaçou chamar a segurança para tirá-los de lá. Os tiros ocorreram apenas seis horas depois que os câmeras deixaram o local.

O irônico é que tudo isso aconteceu poucos dias depois de o sindicato ter fechado um acordo com os estúdios para evitar uma greve da categoria. Um dos itens colocados na pauta de negociações dizia respeito às condições de trabalho. O acordo foi feito mas, pelo visto, a produção do filme não se adequou a ele.

Agora, a tendência é que a responsabilidade pelo acidente termine recaindo sobre a armeira ou o assistente de produção —ou sobre os dois. Claro que eles podem ter parcela de responsabilidade, mas, quando analisamos as condições e o contexto do acidente, fica claro que houve uma cadeia de erros, ocasionados pela tentativa dos produtores de diminuir custos, seja reduzindo o tempo no set de produção (o que leva a atropelos e negligência), seja contratando trabalhadores de menor qualificação, pagando-os mal e fazendo-os trabalhar mais.

Assim, aquilo que parece mero acidente ou, no limite, resultado de erros individuais revela-se, na verdade, uma tragédia evitável, determinada pelas condições precárias em que o trabalho como um todo vinha sendo realizado.

Essa é uma realidade não apenas da indústria cultural norte-americana, mas de uma série de empreendimentos do mesmo tipo em vários lugares do mundo. Isso inclui nosso país, que também já experimentou tragédias em locais de cultura e lazer, sendo o caso da boate Kiss, no Rio Grande do Sul, apenas mais um lamentável exemplo.

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