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Andre Pagliarini

História da anistia no Brasil abarca tensões raciais e escudo a torturadores

Em novo livro, historiadora explora como o instrumento foi usado para reparar danos históricos e garantir paz civil

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Manifestação pela anistia política no centro de São Paulo U. Dettmar - 22.ago.79/Folhapress

Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

[RESUMO] Livro de historiadora norte-americana traça a trajetória das anistias concedidas pelo Estado brasileiro a seus oponentes políticos ao longo da experiência republicana, compondo uma reflexão complexa sobre as fragilidades da democracia brasileira e os variados fatores que moldaram os esforços de reconciliação em períodos tensos da história

Entre as várias maneiras em que Jair Bolsonaro se diferencia de seus antecessores, uma das mais notórias é a sua perspectiva sobre a ditadura militar.

Desde a redemocratização, sucessivos governos lidaram, por meio de medidas variadas, com o legado traumático do período autoritário. Fernando Henrique Cardoso (PSDB), exilado pelos generais, aprovou tanto a Lei dos Mortos e Desaparecidos em 1995 quanto a lei 10.559, de 2002, que permitiu ao Estado promover reparações às vítimas de perseguição da ditadura e criou a Comissão de Anistia para julgar pedidos de indenização.

Durante o governo Dilma Rousseff (PT), foi instalada a CNV (Comissão Nacional da Verdade), visando à produção de uma narrativa oficial acerca dos abusos do Estado durante o período de exceção —por razões políticas, a CNV não focou somente a ditadura instalada em 1964 e investigou violações a partir de 1946.

Lentamente, o Brasil avançava na questão da reparação histórica. Em 2016, Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia nos governos Lula e Dilma Rousseff, foi escolhido para o cargo de secretário-executivo da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos). Durante o tempo à frente da Comissão de Anistia, Abrão transformou a entidade, essencialmente burocrática, em uma ferramenta de engajamento cívico.

As caravanas da Anistia, por exemplo, percorreram o Brasil inteiro com atos e debates públicos, inspirando reflexões e renovando compromissos democráticos em nome do governo federal. As audiências públicas da comissão serviram, muitas vezes, como oportunidades para Abrão pedir desculpas aos afetados em nome do Estado, um gesto simbólico de profunda importância.

Não deveria nos surpreender que o atual governo tenha buscado extinguir a Comissão de Anistia, como informou o El País Brasil. No entanto, os ventos em torno dessa questão começaram a mudar antes mesmo da eleição de Bolsonaro. Eneá Stutz e Almeida, professora de direito da UnB (Universidade de Brasília) e conselheira da comissão entre 2009 e 2018, diz que, "desde a gestão Temer, o Estado brasileiro nem pede mais perdão a quem a Comissão de Anistia entende que tem de receber uma reparação".

Pouco depois de tomar posse, Bolsonaro transferiu a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para o novo (e menos importante) Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela pastora evangélica Damares Alves.

Em 2019, a ministra cancelou a construção do Memorial da Anistia, em Belo Horizonte, mesmo que R$ 28 milhões já tivessem sido gastos no projeto. No ano seguinte, Damares aprovou a anulação da anistia política de 300 pessoas por "ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo".

Visita da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, às instalações do Memorial da Anistia Política do Brasil, em Belo Horizonte, em 2019 - Marcílio Lana/UFMG/Divulgação

No âmbito internacional, por sua vez, Paulo Abrão foi impedido de assumir um segundo mandato à frente da CIDH pelo secretário-geral da OEA indicado pelo ex-presidente americano Donald Trump, apesar de ter obtido apoio interno unânime.

Condições políticas influem sobre a importância dada à reparação de danos históricos, e os anos Bolsonaro não poderiam ser mais diferente que a era Lula e Dilma.

Em seu livro recém-lançado, "Amnesty in Brazil: Recompense after Repression, 1895-2010", a historiadora norte-americana Ann M. Schneider traça a trajetória das anistias ao longo da experiência republicana brasileira.

Schneider não faz um relato meramente cronológico. Dividida em três partes, a obra fornece uma reflexão complexa sobre os fatores que moldaram os esforços de reconciliação, restituição e perdão em períodos tensos da vida nacional.

Concentrando-se na história das anistias, a autora traz à tona reflexões mais essenciais sobre a qualidade cambiante da democracia brasileira, mais generosa em alguns momentos que outros, e lembra que processos democráticos fazem parte de uma herança a ser cuidada e aperfeiçoada —e não tomada como certa.

"Reconhecendo que as expectativas acerca dos direitos na década de 1890 diferiam significativamente daquelas na década de 1980, a anistia muitas vezes era considerada em qualquer equação de negociação e acordo entre figuras da oposição e o Estado," escreve Schneider. "Ao longo do tempo, [a anistia] evoluiu como uma convenção política que visava de várias maneiras promover a legitimidade do Estado, garantir a paz civil, fazer justiça e garantir os direitos de cidadania."

A historiadora afirma que o livro não é "uma história do ato de anistia" e sim dos anistiados. Essa divisão conceitual não se sustenta, o que não é um demérito do livro. O momento comemorativo de concessão da anistia representa, em quase todos os casos, o auge de muitos esforços e negociações —o ato é tão importante quanto a mobilização da qual ele resulta. Schneider lida com várias dimensões desses episódios com sutileza e sensibilidade.

A primeira parte da obra aborda o período entre as décadas de 1890 e 1910, quando a anistia emergiu como uma ferramenta para apaziguar os ânimos acirrados da Velha República. São três personagens principais: o almirante Eduardo Wandenkolk, João Cândido Felisberto, o "almirante negro", e Rui Barbosa, o elo entre a história dos dois primeiros.

Wandenkolk foi ministro da Marinha no governo do marechal Deodoro da Fonseca e senador da República de 1890 a 1900. Seu papel mais importante, contudo, foi o de inimigo ferrenho de Floriano Peixoto. Em 23 de novembro de 1891, Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República, renunciou ao cargo. Peixoto, seu vice de índole autoritária, assumiu a Presidência.

Alguns meses depois, um grupo de militares de alta patente circulou um documento exigindo novas eleições para presidente. Wandenkolk foi um dos signatários do Manifesto dos 13 generais, como o texto ficou conhecido, um ato de sedição aos olhos do novo presidente, e acabou banido para Tabatinga, na longínqua fronteira amazônica.

Do seu exílio interno, Wandenkolk escreveu uma carta a Rui Barbosa, reclamando da "desumanidade com que estão sendo tratados os presos políticos" em Tabatinga. Um grande advogado comprometido com as promessas cívicas da Constituição republicana, Barbosa entrou com um pedido de habeas corpus no STF (Supremo Tribunal Federal) em nome de Wandenkolk, os outros signatários do manifesto e mais 30 pessoas presas ou banidas por decreto presidencial.

O STF, sitiado pelo arbítrio do governo Peixoto, rejeitou o pedido, mas, em 1894, o contexto político mudou com a posse de Prudente de Morais. Wandenkolk e seus pares foram anistiados em 1895 e aproveitaram a nova dinâmica política para alegar que perdão por si só não bastava: o Estado tinha o dever de garantir que os anistiados recuperassem seus antigos cargos. Muitos conseguiram, como o próprio Wandenkolk.

Schneider contrasta a magnanimidade do Estado com militares do alto escalão nesse período com o tratamento dos envolvidos na Revolta da Chibata, de 1910. O uso corriqueiro do chicote por oficiais da Marinha (brancos em sua maioria) para punir marinheiros (predominantemente negros) foi o estopim do motim.

Após liderar o levante, João Cândido mandou um telegrama com as exigências dos rebeldes: "Não queremos o retorno da chibata. [...]. Queremos uma resposta imediata. Se não recebermos tal resposta, destruiremos a cidade e os navios que não são revoltantes".

Revolta da Chibata, A bordo do navio São Paulo, Rio de Janeiro, 26/11/1910
Revolta da Chibata. Imagem do navio São Paulo, no Rio de Janeiro, em 26.nov.1910 - Reprodução

Enquanto jornais demonstravam pânico sobre o potencial explosivo da revolta —tanto por razões bélicas quanto raciais—, Rui Barbosa mais uma vez se solidarizou com os supostos inimigos da ordem. "Senhores," disse o senador aos seus colegas, "esse é um levante honrado!".

Encontrando dificuldades incontornáveis nos planos de repressão do motim, o Senado aprovou uma anistia aos amotinados. Quando a revolta terminou, pouco havia mudado no cotidiano dos marinheiros, mas a anistia como prática de reconciliação sofreu um declínio na opinião pública.

A anistia passou a ser um marco de vergonha, sustenta Schneider, e não de restituição, como no caso de Wandenkolk e seus colegas. A raça dos anistiados de 1910 obviamente impulsionou uma reavaliação da prática. É por isso que o governo federal praticamente deixou de usar a anistia como ferramenta até a Revolução de 1930, afirma a autora.

Se a anistia emergiu no início da República como uma forma de realização retroativa das promessas rompidas da carta magna, sua utilização para proteger rebeldes negros gerou um incômodo enorme na elite.

A segunda parte do livro trata da burocratização da anistia na Era Vargas. Ao analisar como o Estado se desenvolveu para lidar com questões de ressarcimento e indenização nos conturbados anos 1930 e 1940, Schneider argumenta que "o que era considerado ameaçador para a nação brasileira evoluiu das angústias raciais internalizadas da primeira geração da República para os novos medos e pressões trazidas pelas realidades externas da Grande Depressão, da Segunda Guerra Mundial e da vindoura Guerra Fria".

Pouco depois de assumir o poder, Getúlio Vargas reintroduziu a prática sistemática de anistia, tanto para quem o ajudou a derrubar a oligarquia quanto para seus opositores. A Constituição de 1934, por exemplo, criou uma comissão para analisar pedidos de indenização de funcionários públicos expurgados pela Revolução de 1930 e também anistiava, formalmente, na Revolução Constitucionalista de 1932.

A historiadora ressalta as referências retóricas à família nesse período, situando a conciliação na Era Vargas como uma reflexão do paternalismo autoritário getulista.

O caso de Luís Carlos Prestes é emblemático. Schneider cita uma carta a Getúlio de 1941 em que cerca de 800 signatários pediam a liberdade do líder comunista preso desde 1936. Os autores sustentavam que a benevolência de Vargas, "um cônjuge exemplar e, acima de tudo, um pai carinhoso," no caso de Prestes o colocaria "na invejável posição de pacificador do lar brasileiro, como o homem que com apenas um ato faria desaparecer todo ódio e recriminações".

A despeito desses pedidos, Prestes teria que esperar até 1945, quando uma nova correlação de forças convenceu Vargas a anistiar os presos políticos do Estado Novo. Inaugurava-se o que o brasilianista Thomas Skidmore chamou de "um experiência de democracia" —experiência no sentido cientifico, como se construir uma democracia plena era correlato à termodinâmica—, que duraria até o golpe de 1964.

A terceira parte do livro trata da ditadura militar e de suas consequências duradouras. É nessa seção que Schneider discute a anistia provavelmente mais famosa, a que marcou o começo do fim da ditadura: a Lei de Anistia de 1979.

Se, por um lado, essa lei permitiu a volta dos exilados e a reabertura do processo político, ela também criou um escudo legal para agentes do Estado acusado de crimes contra a humanidade.

Mesmo hoje, algumas pessoas —até no Palácio do Planalto— não acreditam que os militares deviam qualquer explicação perante o poder civil. O regime tinha toda a razão em perseguir brutalmente os opositores, eles dizem.

Os generais, no entanto, não eram tolos. Eles sabiam que os ventos políticos estavam mudando na América Latina e que poderiam ter que responder na Justiça por seus crimes um dia. Com essa possibilidade em mente, a Lei da Anistia incluiu também crimes conexos, delitos de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

Os limites do perdão concedido tanto ao Estado quanto aos revolucionários de esquerda foram bastante abrangentes. Tornou-se praticamente impossível responsabilizar torturadores.

A abrangência irrazoável da Lei de Anistia é justamente a razão pela qual há um amplo movimento em defesa da sua revogação. "Se já é tarde para seguir o caminho dos irmãos e irmãs da Argentina, que condenaram mais de 200 militares e civis por envolvimento em prisões, torturas, desaparecimentos e mortes", escreveu a deputada Maria do Rosário (PT-RS) em 2019, "que não seja tarde para reparar o que for possível e reconduzir o Brasil aos trilhos da democracia".

Nesse entendimento, a própria anistia seria um obstáculo para o fortalecimento cívico da nação após um período traumático de ditadura.

A historiadora traça a emergência do discurso de direitos humanos a partir do do regime militar como justificativa para novos acertos de contas com o Estado. Com a redemocratização, deixou de ser absurdo imaginar que o respeito aos direitos humanos caminharia de mãos dadas com o aperfeiçoamento das instituições democráticas. Assim foi, fundamentalmente, até há pouco tempo.

O aspecto mais importante da obra de Schneider é nos lembrar que a atitude do Estado com cidadãos rebeldes revela muito sobre a natureza da sociedade em um dado momento. O Brasil se encontra em um momento impiedoso, com um governo que ignora ou relativiza os crimes do passado, para não falar da conivência com delitos atuais. A autora nos lembra que essa condição também é passageira.

Amnesty in Brazil: Recompense after Repression, 1895-2010

  • Preço R$ 232 (ebook)
  • Autor Ann M. Schneider
  • Editora University of Pittsburgh Press
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